Contos, Fotos e Histórias do Marquês da Ajuda, Cacela e Sta Rita

domingo, maio 14, 2006

CONTO XX


Como a senhora Ana passava o dia inteiro ao sol era o senhor Patrício que tinha de fazer a comida para ambos quando acabava de tratar dos animais. Também lavava a louça por que a água estava sempre fria, mesmo no pino do verão, e porque ela sofria muito de reumatismos antigos.
O meu pai, quando via ele estar a mexer as panelas com o seu ar conformado, ficava muito zangado, parecia pólvora, e vinha para casa resmungando.
- Aquela gaja anda todo o dia ao sol e é o desgraçado do velho que ainda tem de fazer a comida.
- Ela é muito doente, coitada! - dizia minha mãe a tentar desculpar a senhora Ana.
- Manhosa é que ela é! Foi sempre uma puta sabida. Parvo é ele que lhe apara os golpes.
Para as crianças o senhor Patrício era um homem muito bom e paciente.
- Foi sempre um parvo - continuava meu pai, rezingão e defensor dos direitos do homem - a mulher dele comeu enquanto havia e quando o viu na miséria bateu as asas.
- Quem sabe as razões que o pobre tinha... - esclareceu minha mãe a defender a legalidade do casamento.
- Também não sei para que quer agora esta gaja que leva o dia inteiro à boa vida enquanto ele trabalha e à noite ainda tem de lhe por paninhos quentes. Raios a partam !
- Ele é boa pessoa - disse minha mãe.
- Tão bom que até é parvo.
- Sempre tem companhia à noite... A senhora Ana, coitada, é doente mas sempre lhe faz companhia... Assim não está tão abandonado... - insistia minha mãe mas sem explicar as razões deles.
- Antes só que mal acompanhado, sentenciou meu pai que era rebelde, independente e muito senhor do seu nariz.
- Vê lá se ele não a trata bem. Se ele não tem todas as atenções com ela - repontou minha mãe procurando demonstrar que as putas tinham mais sorte do que ela tivera, que era uma pessoa honesta e não havia nada que se lhe apontasse.
- Se ela fosse mais nova ainda lhe punha os cornos, que ele a tratá-la assim não merece outra coisa - disse meu pai.
- Tens cada maneira de ver as coisas. Pois era uma mulher assim que muitos homens precisavam - disse minha mãe a olhar muito significativamente para meu pai e depois para o lado, para um auditório imaginado, inadvertidamente.
- Os que precisam têm-nas sempre. E o meu pai, que não estava para dar mais explicações por que toda a conversa fora desnecessária e as considerações muito sensatas de minha mãe não valiam nada para ele, acabou logo com o diálogo.
- Então, essa merda do jantar quando está pronta?
Eu e os meus irmãos ficávamos de olhos abertos cada vez que o meu pai interrompia as conversas e embora já estivéssemos habituados a que fosse assim, esperávamos que um dia qualquer falasse mais delicadamente. Ficávamos encarnados com vergonha de ouvir da boca dele imundices de lixeira e depois comíamos procurando esquecer as palavras para que a comida não cheirasse mal. Levávamos a colher à boca lembrando os excrementos deixados por anónimos debaixo das árvores onde, por descuido, atolávamos os sapatos ou as botas que depois arrastavam cheiros repelentes atrás, dos nossos passos.
Meu pai sentava-se à mesa, no topo, nunca tirava o chapéu da cabeça porque era chefe de família e calvo. As moscas teimavam em pousar na sua careca luzidia desconhecedoras da importância que ele tinha e as crianças riam por que havia quem fosse capaz de fazer o que ele não podia evitar. E as moscas eram tão pequeninas, como se não tivessem importância só para desconhecerem a importância das pessoas poderosas, como o meu pai que se deslocava de bicicleta de uma quinta para a outra, dando ordens a que ninguém desobedecia pois que ele não admitia desobediências. Doutra maneira ele os deixaria passar fome e a todos os filhos para os ensinar a obedecer.
Nos tempos quentes o meu pai deitava-se numa preguiceira a dormir a sesta e o chapéu sobre a cara para que as moscas não lhe pousassem no nariz. Mas elas andavam a passear nele muito lentamente, descontraídas, a fazerem-lhe cócegas. Depois paravam, levantavam as asas em exercícios ginásticos e cagavam-lhe em cima do nariz. Ele acordava, apanhava o chapéu do chão, tornava a pô-lo sobre a cara e voltava tudo ao mesmo se tivéssemos paciência para continuar a ver ou se éramos obrigados por castigo. Quando estávamos de castigo íamos, devagarinho chamar as moscas para que elas o invadissem até que ele se aborrecesse de dormir e saísse para depois ficarmos à vontade e podermos brincar. À hora das refeições ninguém podia falar e o primeiro que o fizesse era logo advertido por minha mãe com o seu aforismo sempre no mesmo estilo:
- Ovelha que berra bocado que perde?
Continuávamos a falar, pois a comida era certa, até que meu pai gritasse:
- É comer e calar. Todos nos calávamos. Quando os adultos mandam calar assim as crianças elas ficam logo a pensar que o destino devia mandar qualquer coisa que as vingasse. E o destino muitas vezes ouvias. Duas moscas vinham lá de cima abraçadas pelo amor e caiam no prato da sopa de meu pai. Nós guardávamos os risos e os comentários para depois, quando houvesse possibilidades de saborearmos a vingança. Minha irmã Rosália reconstituía a cena, com o prato na frente e as moscas nos dedos, como aviões picando, com as caras furibundas e as palavras que o pai empregava nessas ocasiões. Meu pai sabia disso e implicava com ela, até porque era parecida com minha avó Teresa, pessoa muito independente para mãe dele e com quem não se cortava muito bem. Eram muito parecidos fisionomicamente e nos feitios.
- Vocês viram aquelas moscas que caíram no prato do velho? - Perguntava Rosália.
- Vimos.
- Andavam as duas no ar - acrescentava ela - e até julguei que elas se deixassem. Mas não. Moscas lindas! Acabaram por cair no prato dele.
- Estavam gordas - disse eu. - Foi a Providência - disse o Luís.
Estamos a falar de moscas e não de religião - disse minha irmã Rosália a arremedar o velho.
- Reparaste na cara dele? - Perguntei.
- Que grandes trombas!
- Mas isso teve alguma graça? - Perguntou o Luís que era muito respeitador das ideias do pai e o neto favorito da avó Teresa.

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