Contos, Fotos e Histórias do Marquês da Ajuda, Cacela e Sta Rita

segunda-feira, maio 08, 2006

CONTO XIX







Tinha acabado de nascer o sol quando a senhora Ana apareceu à porta trazendo na boca as palavras lamurientas da sua velhice. Minha mãe foi atendê-la.
Estávamos todos na casa de jantar, a tomar o pequeno-almoço, com meu pai no topo da mesa a assumir a respeitabilidade de chefe de família, chapéu na cabeça.
- Está lá fora a senhora Ana a clamar que o senhor Patrício ainda não ordenhou as vacas - disse minha mãe.
- Mas o que está esse homem a fazer, a estas horas? - Perguntou com seus ares inquisidores de querer tudo a horas certas.
- Eu não percebi bem o que ela disse... Deve haver novidade para aparecer tão cedo. Só se levanta lá para as onze.
- Manda lá entrar essa gaja!
A senhora Ana surgiu à porta da casa de jantar arrastando os pés, muito enrolada no seu velho xaile, prendendo-o com as mãos de raízes mortas sobre o peito seco e caído, com aspecto amedrontado por que se tratava de falar com o meu pai e ela tinha mais medo dele do que qualquer cão desconhecido sem açaime, ainda que raivoso.
- Então, que está o senhor Patrício a fazer, que a estas lindas horas ainda não ordenhou as vacas?
A senhora Ana ficou calada, cozida pelo medo que ardia dentro de si.
- Vocês julgam que isto é alguma pensão, ou quê?
- Está deitado, senhor Venâncio...
- Isso já eu sei.
- Não se levantou...
- Vocês estão é a abusar - disse meu pai com a voz das condenações, dura como aço das espadas que ganhavam as batalhas antigas.
- É costume dele levantar-se sempre muito cedo... - disse a senhora Ana a desculpar a falta e a tentar remediar a injusta acusação de meu pai.
- Uma pessoa tem pena de vocês e depois cada um que se lixe.
- Ele não fez de propósito...
- Eu ponho tudo na alheta.
A senhora Ana baixou os olhos, envergonhada.
- Vai tudo para a rua que eu não estou disposto a alimentar calões - assegurou meu pai com as espadas justiceiras na voz e no olhar.
A senhora Ana calou-se. Todos estavam calados. Mas era estranho que o Senhor Patrício ainda não se tivesse levantado àquelas horas tão tardias. Meu pai continuava a tomar o pequeno-almoço tirando, calmamente, da tigela, com a colher, as sopas amolecidas no café com leite.
- O serviço todo atrasado - continuou no intervalo de uma mastigação cuidada - o leite ainda nas vacas, os bezerros sem mamarem, se calhar até já se soltou algum que mamou o leite todo e depois temos uma merda para comer.
As crianças sentiram estranhos sabores e aromas nojentos nas palavras.
- Os horários têm de ser cumpridos. Eu não admito descuidos, nem faltas de ninguém, e o Senhor Patrício já tem idade suficiente para saber isso. De mais a mais um homem nascido e criado no campo, que tinha alguma coisa de seu. Por isso é que ele perdeu tudo.
- Estou farta de o chamar, mas ele não responde - esclareceu a senhora Ana tremendo medos interiores.
- Teria o homem morrido? - Perguntou meu pai.
- É preciso ver o que se passa. - Sentenciou minha mãe a rastejar com as palavras das resoluções de meu pai.
- Eu vou lá ver - disse meu pai. E continuou muito calmamente a tomar o seu pequeno-almoço. Dentro de mim a ansiedade de saber o que se passara com o senhor Patrício misturada com o medo de tomar uma atitude qualquer. O senhor Patrício era o boieiro e tinha setenta e oito anos já feitos. Fora um homem com bastantes haveres, mesmo rico, segundo diziam pessoas do seu tempo e conhecimento, mas em pleitos judiciais, com as demoradas e custosas intervenções dos tribunais e advogados que falavam muito bem e tinham sempre razão, acabou por deixar ir tudo por água abaixo e ficou na miséria para ter, depois uma história muito bonita para contar às crianças.
Vivia com a senhora Ana, abastada gozadora da vida enquanto pudera e mais ou menos da sua idade, que contava ter ido passar a lua-de-mel a Sintra, quando nova, com outro.
Eu gostava muito de a ouvir contar os episódios da sua mocidade e sempre que tinha oportunidade perguntava-lhe :
- Ó, senhora Ana, que idade tinha quando foi a Sintra?
- Sei lá, menino, era muito nova e ainda não sabia o que fazia. Teria para aí uns vinte e cinco anos.
- Era bonita?
- Era nova. Quando a gente é nova a vida é sempre diferente. E os novos são sempre bonitos.
- Foi passar a lua-de-mel com o senhor Patrício? - Perguntava eu convencido que as pessoas se casavam uma vez e ficam assim para toda a vida, mesmo que não se entendessem, como era o caso de meus pais que mais pareciam um cão e um gato em permanente desacordo.
- Que ideia, menino! O Senhor Patrício nessa altura tinha mulher e filhos.
- E não eram seus?
- Eram da mulher dele pelo menos. Era rico. A mulher só o deixou quando ele ficou sem nada, quase no fim da vida. Ela foi viver com uma filha que está muito bem casada, com um polícia, em Faro. E como o genro tem muita autoridade pôs o velho a andar.
- E não teve vergonha?
- Quem tem autoridade não precisa de ter vergonha.
- E depois? Foi a Sintra...
- Fui, mas com outra roupa, um homem que fazia inveja a todas as mulheres. Até as da alta.
- E foi interessante?
- Se foi! Ele era um homem às direitas. Que naquele tempo ainda os havia assim. Delicado. Gentil. Os homens arruinavam-se por nós. Bons tempos!
- Suspiros profundos da senhora Ana.
- Fomos de comboio de Lisboa para Sintra. É uma terra muito linda, com bonitos palácios e tudo. Onde costumava ir a gente de qualidade passar a lua-de-mel.
- Foi quando a senhora Ana se casou?
- Quase. Que o casar não é tudo. Eu nunca me casei lá por esses registos ou igrejas como as pessoas fazem. E nunca me faltaram homens que me quisessem. E dos bons! Às vezes nem sabia como me desfazer deles.
- Porquê? - Eles colavam-se às pernas e às ideias duma pessoa. E todos muito egoístas. Enquanto não conhecem bem uma pessoa eram todas delicadezas e considerações. Quando julgavam, que nos tinham nas mãos e podiam dispor de nós à sua bela vontade começavam logo com exigências. Mas tive uma vida muito bonita, lá isso tive! - Dizia a senhora Ana e ficava a olhar para as imagens que tinha dentro de si.
- Como lhe ia contando, dessa vez que fui a Sintra, apanhamos um trem, assim como o do senhor Ferramacho, mas com dois cavalos que eram mesmo uma lindeza, e demos uma volta pela serra onde há jardins e lagos que nunca mais vi em parte alguma. Um sonho. O menino já tem sonhado com jardins muito lindos, daqueles que não há?
- Já - disse eu com espanto a imaginar os jardins do Éden onde só as pessoas boas desta vida andam a passear na outra com música celestial por todos os lados e muita fruta sem bicho.
- Pois ainda é mais bonito do que tudo o que o menino tem sonhado.
Eu ficava, pasmado, a olhar para a senhora e para os trajes que a cobriam a pensar como teria sido ela aos vinte e cinco anos, com pasmo novo nascendo nos meus olhos. Acreditando e duvidando, ao mesmo tempo do que ela me dizia. A pensar que eu talvez nunca chegasse a conhecer Sintra por ficar ainda além dos meus sonhos, no passado dela. A pensar que talvez não pudesse falar de terra tão bonita com o mesmo entusiasmo com que a Senhora Ana o fazia por que ela tinha-me a mim para a ouvir e eu talvez nunca tivesse ninguém interessado no entusiasmo das minhas recordações maiores do que os sonhos dos outros meninos.
O meu pai dizia uma vez e outra “Só me faltava que tivesse vindo pegada ao senhor Patrício esta grande puta ! “ e como ele falava assim dela eu tinha medo de acreditar em certas coisas que me contava embora gostasse muito de a ouvir. E ficava a pensar que, se Sintra era tão bonita como ela dizia, valia a pena ter sido puta, a puta que meu pai asseverava, para lá ter ido em lua de mel sem casamento com um homem que fazia inveja às outras mulheres e, intimamente, desejava ser um homem assim para uma mulher de quem eu gostasse nem que fosse só durante um minuto.
Gostava muito da Senhora Ana por que ela tinha muitos defeitos e o sabia, nunca afirmando qualidades que eu reconhecia nela. Era sempre muito delicada comigo e até para o meu pai embora ele estivesse sempre de maus modos quando falava com ela. E como o pai gostava muito de mulheres - toda a gente dizia isso em coro com minha mãe - teria gostado da senhora Ana se tivesse vivido no mesmo tempo. E teria ido a Sintra com ela, em lua-de-mel. Era isso que eu via no sorriso da senhora Ana enquanto meu pai ralhava com ela.
Talvez o meu avô a tivesse beijado, desejado. Ou possuído, talvez! Agora a senhora Ana estava velha, como os sapatos que servem para uma pessoa continuar descalça mesmo com eles nos pés, e levava o dia inteiro ao sol porque tinha sempre frio. Sobre os ombros o mesmo xaile roçado, muito velho e triste - triste como a pobreza velha - o que será ser velho? Pensava eu, custará muito ser velho? , A tristeza amarga da velhice com sabor a derrota, com os outros a terem pena, a pena da pena dos outros neles, a zangarem-se sempre “isso está mal ““já não sabe o que faz “ “é melhor estar quieto” e muitas outras frases da vergonha de toda a gente. Custará muito ser velho? - Pensava eu uma vez e outra.
Nos ombros velhos da senhora Ana o mesmo xaile que fora de muitas cores alegres e agora não tinha cor nenhuma. Sabia-se que era um xaile porque ela chamava isso àquele trapo que prendia ao peito onde enrolava as mãos velhas, como raízes secas e mirradas, pelo sol, fora da terra. E eu a pensar que tinham sido aquelas mãos que, o homem que fazia inveja a todas as mulheres sentira quentes nas suas, que tocaram nas flores e as levaram com seus aromas de gostar de amar aquela cara velha, riscada pelo tempo, agredida pelas pessoas. Cara de antiguidades carregada sobre os ombros dobrados para a frente, para o futuro de quem já não tem futuro.

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