Casas, Coisas e Louças Velhas

Contos, Fotos e Histórias do Marquês da Ajuda, Cacela e Sta Rita

quarta-feira, agosto 23, 2006

Complexo de Ofélia (a galinha)

Ofélia possuía personalidade de fêmea. Passeava a sua classe, quintal fora, com distinção de quem desfila em passerelle. O seu sonho, ainda franga, era ser rainha de uma capoeira sem redes, um lugar na natureza, batido pelos ventos, agitando a plumagem luzidia. Galinha de sonho de um galo encantado, longe da panela, do forno e das fogueiras. Ofélia detestava os santos populares. As crianças corriam, saltavam sobre o fogo, queimavam alcachofras, frutos do cardo manso que também ardia. Mas as alcachofras eram tipo Fénix, renasciam do fogo no dia seguinte, bem... algumas, porque outras ficavam em carvão.
Mas o que estava a acontecer não era a realização do sonho era a confirmação do pesadelo. O branco de coração preto preenchia os espaços de meditação e relaxamento de Ofélia e um estranho murmurar, sibilino e verrugoso alterava o seu cacarejar. Faltava-lhe a felicidade de encontrar minhoca na terra esgravatada e galo, para companheiro de manhãs despertas pelo seu cantar. Có coró có có...có coró có có, código da madrugada e da carícia erótica. Espreguiçar asas, estendendo-as ao limite da linha de voo em corrida na exiguidade das paredes do quintal. Quantas vezes questionou Ofélia o tamanho do seu pequeno cérebro e pensamento tão vasto. Quantas e quantas vezes se interrogou: como é possível nesta dimensão ser apenas galinha?

terça-feira, agosto 15, 2006

Complexo de Ofélia ( o ovo )

Ofélia era galinha! Ora galinha põe ovo pelo menos uma vez por semana, se não diariamente estando feliz. Era como ofélia se sentia na confrontação com o preto. Tinha o apoio das duas restantes fêmeas. Jogava em casa numa casa nova e enquanto dormiu debaixo do banco a ofélia depositava ternamente o seu ovo na material mais macio que encontrasse. Baixava-se lentamente, cú perto do chão, e com cuidado lá saía o esperado ovo. Depois o esperado cocorocó.Há quem diga que é publicidade que a galinha faz. Pessoalmente não acredito tanto nisso, mas sair um ovo daqueles, grande, cheio de clara e gema, todos os dias também deve doer. Tal como uma fêmea ter filhos todos os dias. Que canseira!
O ovo, para além do preto, eram as únicas preocupações de ofélia, a sua agenda diária. Sabia porém que, enquanto o ovo nascesse do seu cú todos os dias, haveria condescendência quanto à sua rotina diária e aos direitos e privilégios adquiridos por uma galinha revolucionária em Abril. Dizia-se mesmo que na revolução das galinhas tinha sido ela a passar o cocorocó necessário, sinal de libertação das grades das capoeiras e início da liberdade de poder estar debaixo do banco em qualquer cozinha. E não na panela. Ofélia respondia na perfeição à questão do que nasceu primeiro o ovo? a galinha?. A galinha, porque sem galinha não há ovo e este era o salvo conduto para, a palavra passe, passaporte para a eternidade da ofélia.

terça-feira, agosto 08, 2006

Complexo de Ofélia (a origem)

Complexo literário-afectivo
A ofélia dormia na cozinha, debaixo de um banco com uma toalha por cima para evitar a entrada da luz matinal e preservar a intimidade do por do ovo. Ofélia gostava de despertar com o sol já alto e passear-se um pouco por aquela dependência antes de sair para o quintal onde divagava o resto do dia até ao ocaso. Então voltava à cozinha ao seu poiso debaixo do banco. A ofélia fazia parte de uma família oriunda do Alentejo e que estabelecera poiso numa casa dos Olivais velho. Eram três fêmeas e um cágado. Para além da ofélia, que era sozinha, as outras duas fêmeas eram mãe e filha. O cágado não tinha nada a ver com a família, sendo apenas o animal de estimação e, assim, o seu elemento político.
Quando se mudou dos Olivais para Sintra a ofélia sentiu inicialmente alguma inadaptação, apesar do banco a ter acompanhado. Era o apartamento em cave, o quintal todo empedrado sem um pouco de terra para esgravatar e sobretudo um negro de cor preta, que se confundia com a noite e de olhar de raposa que também habitava o apartamento. Ofélia tinha habitado o Olivais paradisíaco, das hortas, minhocas, carreirinhos de formigas, casulos de insectos, pequenos charcos de água, floreiras e um quintal de esgravatar. Olivais era a selva da Ofélia, o seu habitat de galinha selvagem, como se gostava de sentir, lançando pequenas corridas a pardais que também apareciam pelo quintal, a tirar partido do seu trabalho esgravatado.

domingo, maio 14, 2006

CONTO XX


Como a senhora Ana passava o dia inteiro ao sol era o senhor Patrício que tinha de fazer a comida para ambos quando acabava de tratar dos animais. Também lavava a louça por que a água estava sempre fria, mesmo no pino do verão, e porque ela sofria muito de reumatismos antigos.
O meu pai, quando via ele estar a mexer as panelas com o seu ar conformado, ficava muito zangado, parecia pólvora, e vinha para casa resmungando.
- Aquela gaja anda todo o dia ao sol e é o desgraçado do velho que ainda tem de fazer a comida.
- Ela é muito doente, coitada! - dizia minha mãe a tentar desculpar a senhora Ana.
- Manhosa é que ela é! Foi sempre uma puta sabida. Parvo é ele que lhe apara os golpes.
Para as crianças o senhor Patrício era um homem muito bom e paciente.
- Foi sempre um parvo - continuava meu pai, rezingão e defensor dos direitos do homem - a mulher dele comeu enquanto havia e quando o viu na miséria bateu as asas.
- Quem sabe as razões que o pobre tinha... - esclareceu minha mãe a defender a legalidade do casamento.
- Também não sei para que quer agora esta gaja que leva o dia inteiro à boa vida enquanto ele trabalha e à noite ainda tem de lhe por paninhos quentes. Raios a partam !
- Ele é boa pessoa - disse minha mãe.
- Tão bom que até é parvo.
- Sempre tem companhia à noite... A senhora Ana, coitada, é doente mas sempre lhe faz companhia... Assim não está tão abandonado... - insistia minha mãe mas sem explicar as razões deles.
- Antes só que mal acompanhado, sentenciou meu pai que era rebelde, independente e muito senhor do seu nariz.
- Vê lá se ele não a trata bem. Se ele não tem todas as atenções com ela - repontou minha mãe procurando demonstrar que as putas tinham mais sorte do que ela tivera, que era uma pessoa honesta e não havia nada que se lhe apontasse.
- Se ela fosse mais nova ainda lhe punha os cornos, que ele a tratá-la assim não merece outra coisa - disse meu pai.
- Tens cada maneira de ver as coisas. Pois era uma mulher assim que muitos homens precisavam - disse minha mãe a olhar muito significativamente para meu pai e depois para o lado, para um auditório imaginado, inadvertidamente.
- Os que precisam têm-nas sempre. E o meu pai, que não estava para dar mais explicações por que toda a conversa fora desnecessária e as considerações muito sensatas de minha mãe não valiam nada para ele, acabou logo com o diálogo.
- Então, essa merda do jantar quando está pronta?
Eu e os meus irmãos ficávamos de olhos abertos cada vez que o meu pai interrompia as conversas e embora já estivéssemos habituados a que fosse assim, esperávamos que um dia qualquer falasse mais delicadamente. Ficávamos encarnados com vergonha de ouvir da boca dele imundices de lixeira e depois comíamos procurando esquecer as palavras para que a comida não cheirasse mal. Levávamos a colher à boca lembrando os excrementos deixados por anónimos debaixo das árvores onde, por descuido, atolávamos os sapatos ou as botas que depois arrastavam cheiros repelentes atrás, dos nossos passos.
Meu pai sentava-se à mesa, no topo, nunca tirava o chapéu da cabeça porque era chefe de família e calvo. As moscas teimavam em pousar na sua careca luzidia desconhecedoras da importância que ele tinha e as crianças riam por que havia quem fosse capaz de fazer o que ele não podia evitar. E as moscas eram tão pequeninas, como se não tivessem importância só para desconhecerem a importância das pessoas poderosas, como o meu pai que se deslocava de bicicleta de uma quinta para a outra, dando ordens a que ninguém desobedecia pois que ele não admitia desobediências. Doutra maneira ele os deixaria passar fome e a todos os filhos para os ensinar a obedecer.
Nos tempos quentes o meu pai deitava-se numa preguiceira a dormir a sesta e o chapéu sobre a cara para que as moscas não lhe pousassem no nariz. Mas elas andavam a passear nele muito lentamente, descontraídas, a fazerem-lhe cócegas. Depois paravam, levantavam as asas em exercícios ginásticos e cagavam-lhe em cima do nariz. Ele acordava, apanhava o chapéu do chão, tornava a pô-lo sobre a cara e voltava tudo ao mesmo se tivéssemos paciência para continuar a ver ou se éramos obrigados por castigo. Quando estávamos de castigo íamos, devagarinho chamar as moscas para que elas o invadissem até que ele se aborrecesse de dormir e saísse para depois ficarmos à vontade e podermos brincar. À hora das refeições ninguém podia falar e o primeiro que o fizesse era logo advertido por minha mãe com o seu aforismo sempre no mesmo estilo:
- Ovelha que berra bocado que perde?
Continuávamos a falar, pois a comida era certa, até que meu pai gritasse:
- É comer e calar. Todos nos calávamos. Quando os adultos mandam calar assim as crianças elas ficam logo a pensar que o destino devia mandar qualquer coisa que as vingasse. E o destino muitas vezes ouvias. Duas moscas vinham lá de cima abraçadas pelo amor e caiam no prato da sopa de meu pai. Nós guardávamos os risos e os comentários para depois, quando houvesse possibilidades de saborearmos a vingança. Minha irmã Rosália reconstituía a cena, com o prato na frente e as moscas nos dedos, como aviões picando, com as caras furibundas e as palavras que o pai empregava nessas ocasiões. Meu pai sabia disso e implicava com ela, até porque era parecida com minha avó Teresa, pessoa muito independente para mãe dele e com quem não se cortava muito bem. Eram muito parecidos fisionomicamente e nos feitios.
- Vocês viram aquelas moscas que caíram no prato do velho? - Perguntava Rosália.
- Vimos.
- Andavam as duas no ar - acrescentava ela - e até julguei que elas se deixassem. Mas não. Moscas lindas! Acabaram por cair no prato dele.
- Estavam gordas - disse eu. - Foi a Providência - disse o Luís.
Estamos a falar de moscas e não de religião - disse minha irmã Rosália a arremedar o velho.
- Reparaste na cara dele? - Perguntei.
- Que grandes trombas!
- Mas isso teve alguma graça? - Perguntou o Luís que era muito respeitador das ideias do pai e o neto favorito da avó Teresa.

segunda-feira, maio 08, 2006

CONTO XIX







Tinha acabado de nascer o sol quando a senhora Ana apareceu à porta trazendo na boca as palavras lamurientas da sua velhice. Minha mãe foi atendê-la.
Estávamos todos na casa de jantar, a tomar o pequeno-almoço, com meu pai no topo da mesa a assumir a respeitabilidade de chefe de família, chapéu na cabeça.
- Está lá fora a senhora Ana a clamar que o senhor Patrício ainda não ordenhou as vacas - disse minha mãe.
- Mas o que está esse homem a fazer, a estas horas? - Perguntou com seus ares inquisidores de querer tudo a horas certas.
- Eu não percebi bem o que ela disse... Deve haver novidade para aparecer tão cedo. Só se levanta lá para as onze.
- Manda lá entrar essa gaja!
A senhora Ana surgiu à porta da casa de jantar arrastando os pés, muito enrolada no seu velho xaile, prendendo-o com as mãos de raízes mortas sobre o peito seco e caído, com aspecto amedrontado por que se tratava de falar com o meu pai e ela tinha mais medo dele do que qualquer cão desconhecido sem açaime, ainda que raivoso.
- Então, que está o senhor Patrício a fazer, que a estas lindas horas ainda não ordenhou as vacas?
A senhora Ana ficou calada, cozida pelo medo que ardia dentro de si.
- Vocês julgam que isto é alguma pensão, ou quê?
- Está deitado, senhor Venâncio...
- Isso já eu sei.
- Não se levantou...
- Vocês estão é a abusar - disse meu pai com a voz das condenações, dura como aço das espadas que ganhavam as batalhas antigas.
- É costume dele levantar-se sempre muito cedo... - disse a senhora Ana a desculpar a falta e a tentar remediar a injusta acusação de meu pai.
- Uma pessoa tem pena de vocês e depois cada um que se lixe.
- Ele não fez de propósito...
- Eu ponho tudo na alheta.
A senhora Ana baixou os olhos, envergonhada.
- Vai tudo para a rua que eu não estou disposto a alimentar calões - assegurou meu pai com as espadas justiceiras na voz e no olhar.
A senhora Ana calou-se. Todos estavam calados. Mas era estranho que o Senhor Patrício ainda não se tivesse levantado àquelas horas tão tardias. Meu pai continuava a tomar o pequeno-almoço tirando, calmamente, da tigela, com a colher, as sopas amolecidas no café com leite.
- O serviço todo atrasado - continuou no intervalo de uma mastigação cuidada - o leite ainda nas vacas, os bezerros sem mamarem, se calhar até já se soltou algum que mamou o leite todo e depois temos uma merda para comer.
As crianças sentiram estranhos sabores e aromas nojentos nas palavras.
- Os horários têm de ser cumpridos. Eu não admito descuidos, nem faltas de ninguém, e o Senhor Patrício já tem idade suficiente para saber isso. De mais a mais um homem nascido e criado no campo, que tinha alguma coisa de seu. Por isso é que ele perdeu tudo.
- Estou farta de o chamar, mas ele não responde - esclareceu a senhora Ana tremendo medos interiores.
- Teria o homem morrido? - Perguntou meu pai.
- É preciso ver o que se passa. - Sentenciou minha mãe a rastejar com as palavras das resoluções de meu pai.
- Eu vou lá ver - disse meu pai. E continuou muito calmamente a tomar o seu pequeno-almoço. Dentro de mim a ansiedade de saber o que se passara com o senhor Patrício misturada com o medo de tomar uma atitude qualquer. O senhor Patrício era o boieiro e tinha setenta e oito anos já feitos. Fora um homem com bastantes haveres, mesmo rico, segundo diziam pessoas do seu tempo e conhecimento, mas em pleitos judiciais, com as demoradas e custosas intervenções dos tribunais e advogados que falavam muito bem e tinham sempre razão, acabou por deixar ir tudo por água abaixo e ficou na miséria para ter, depois uma história muito bonita para contar às crianças.
Vivia com a senhora Ana, abastada gozadora da vida enquanto pudera e mais ou menos da sua idade, que contava ter ido passar a lua-de-mel a Sintra, quando nova, com outro.
Eu gostava muito de a ouvir contar os episódios da sua mocidade e sempre que tinha oportunidade perguntava-lhe :
- Ó, senhora Ana, que idade tinha quando foi a Sintra?
- Sei lá, menino, era muito nova e ainda não sabia o que fazia. Teria para aí uns vinte e cinco anos.
- Era bonita?
- Era nova. Quando a gente é nova a vida é sempre diferente. E os novos são sempre bonitos.
- Foi passar a lua-de-mel com o senhor Patrício? - Perguntava eu convencido que as pessoas se casavam uma vez e ficam assim para toda a vida, mesmo que não se entendessem, como era o caso de meus pais que mais pareciam um cão e um gato em permanente desacordo.
- Que ideia, menino! O Senhor Patrício nessa altura tinha mulher e filhos.
- E não eram seus?
- Eram da mulher dele pelo menos. Era rico. A mulher só o deixou quando ele ficou sem nada, quase no fim da vida. Ela foi viver com uma filha que está muito bem casada, com um polícia, em Faro. E como o genro tem muita autoridade pôs o velho a andar.
- E não teve vergonha?
- Quem tem autoridade não precisa de ter vergonha.
- E depois? Foi a Sintra...
- Fui, mas com outra roupa, um homem que fazia inveja a todas as mulheres. Até as da alta.
- E foi interessante?
- Se foi! Ele era um homem às direitas. Que naquele tempo ainda os havia assim. Delicado. Gentil. Os homens arruinavam-se por nós. Bons tempos!
- Suspiros profundos da senhora Ana.
- Fomos de comboio de Lisboa para Sintra. É uma terra muito linda, com bonitos palácios e tudo. Onde costumava ir a gente de qualidade passar a lua-de-mel.
- Foi quando a senhora Ana se casou?
- Quase. Que o casar não é tudo. Eu nunca me casei lá por esses registos ou igrejas como as pessoas fazem. E nunca me faltaram homens que me quisessem. E dos bons! Às vezes nem sabia como me desfazer deles.
- Porquê? - Eles colavam-se às pernas e às ideias duma pessoa. E todos muito egoístas. Enquanto não conhecem bem uma pessoa eram todas delicadezas e considerações. Quando julgavam, que nos tinham nas mãos e podiam dispor de nós à sua bela vontade começavam logo com exigências. Mas tive uma vida muito bonita, lá isso tive! - Dizia a senhora Ana e ficava a olhar para as imagens que tinha dentro de si.
- Como lhe ia contando, dessa vez que fui a Sintra, apanhamos um trem, assim como o do senhor Ferramacho, mas com dois cavalos que eram mesmo uma lindeza, e demos uma volta pela serra onde há jardins e lagos que nunca mais vi em parte alguma. Um sonho. O menino já tem sonhado com jardins muito lindos, daqueles que não há?
- Já - disse eu com espanto a imaginar os jardins do Éden onde só as pessoas boas desta vida andam a passear na outra com música celestial por todos os lados e muita fruta sem bicho.
- Pois ainda é mais bonito do que tudo o que o menino tem sonhado.
Eu ficava, pasmado, a olhar para a senhora e para os trajes que a cobriam a pensar como teria sido ela aos vinte e cinco anos, com pasmo novo nascendo nos meus olhos. Acreditando e duvidando, ao mesmo tempo do que ela me dizia. A pensar que eu talvez nunca chegasse a conhecer Sintra por ficar ainda além dos meus sonhos, no passado dela. A pensar que talvez não pudesse falar de terra tão bonita com o mesmo entusiasmo com que a Senhora Ana o fazia por que ela tinha-me a mim para a ouvir e eu talvez nunca tivesse ninguém interessado no entusiasmo das minhas recordações maiores do que os sonhos dos outros meninos.
O meu pai dizia uma vez e outra “Só me faltava que tivesse vindo pegada ao senhor Patrício esta grande puta ! “ e como ele falava assim dela eu tinha medo de acreditar em certas coisas que me contava embora gostasse muito de a ouvir. E ficava a pensar que, se Sintra era tão bonita como ela dizia, valia a pena ter sido puta, a puta que meu pai asseverava, para lá ter ido em lua de mel sem casamento com um homem que fazia inveja às outras mulheres e, intimamente, desejava ser um homem assim para uma mulher de quem eu gostasse nem que fosse só durante um minuto.
Gostava muito da Senhora Ana por que ela tinha muitos defeitos e o sabia, nunca afirmando qualidades que eu reconhecia nela. Era sempre muito delicada comigo e até para o meu pai embora ele estivesse sempre de maus modos quando falava com ela. E como o pai gostava muito de mulheres - toda a gente dizia isso em coro com minha mãe - teria gostado da senhora Ana se tivesse vivido no mesmo tempo. E teria ido a Sintra com ela, em lua-de-mel. Era isso que eu via no sorriso da senhora Ana enquanto meu pai ralhava com ela.
Talvez o meu avô a tivesse beijado, desejado. Ou possuído, talvez! Agora a senhora Ana estava velha, como os sapatos que servem para uma pessoa continuar descalça mesmo com eles nos pés, e levava o dia inteiro ao sol porque tinha sempre frio. Sobre os ombros o mesmo xaile roçado, muito velho e triste - triste como a pobreza velha - o que será ser velho? Pensava eu, custará muito ser velho? , A tristeza amarga da velhice com sabor a derrota, com os outros a terem pena, a pena da pena dos outros neles, a zangarem-se sempre “isso está mal ““já não sabe o que faz “ “é melhor estar quieto” e muitas outras frases da vergonha de toda a gente. Custará muito ser velho? - Pensava eu uma vez e outra.
Nos ombros velhos da senhora Ana o mesmo xaile que fora de muitas cores alegres e agora não tinha cor nenhuma. Sabia-se que era um xaile porque ela chamava isso àquele trapo que prendia ao peito onde enrolava as mãos velhas, como raízes secas e mirradas, pelo sol, fora da terra. E eu a pensar que tinham sido aquelas mãos que, o homem que fazia inveja a todas as mulheres sentira quentes nas suas, que tocaram nas flores e as levaram com seus aromas de gostar de amar aquela cara velha, riscada pelo tempo, agredida pelas pessoas. Cara de antiguidades carregada sobre os ombros dobrados para a frente, para o futuro de quem já não tem futuro.