Contos, Fotos e Histórias do Marquês da Ajuda, Cacela e Sta Rita

sábado, maio 06, 2006

CONTO XVII


Minha irmã mais velha chamava-se Rosália e tinha mais quatro anos do que eu. Já era uma senhora e tinha muitos pretendentes que meu pai trazia afastados devido aos seus maus modos.
- Qual será o rapaz que não se afasta da moça! - Exclamava minha mãe.
Luís tinha doze anos e Natal de Jesus ia nos dez. Ambos andavam na quarta classe pois o Luís era um bocado duro para aprender. A professora, senhora de muito respeito e educação que até punha pó de arroz cheiroso na cara, batia-lhe com a cabeça no quadro preto e ele deitava muito sangue pelo nariz. Fumava porque fazia bem, segundo opinião de pessoas mais velhas, e a minha mãe comprava-lhe onças de tabaco para o tratamento. Eu fumava às escondidas e só deitava sangue pelo nariz quando o meu pai me apanhava.
Minha irmã Clara começara há pouco a dar os primeiros passos. Tinha quinze meses, era muito gorda e mexia em tudo. Chamávamos-lhe o descuido mas a minha mãe não gostava nada dessa alcunha.
Meu pai era para toda a gente o Senhor Venâncio e minha mãe a senhora Clarisse mas para os documentos oficiais meus pais eram também Alves Figueira e minha mãe Ramos Figueira. Figueira era o apelido de meu pai que vinha desde o tempo das antiguidades como diziam os velhos que sempre tinham conhecido os Figueiras. Isso era motivo de orgulho para toda a família.
Morávamos na Quinta dos Lobos Velhos, mas o meu pai possuía ainda a Quinta da Cerro Alto, a da Figueiral e a das Andorinhas. E outras courelas herdadas por minha mãe e às quais ele não dava importância porque eram pequenas e tinham vindo do meu avô materno, lavrador de meia tigela e pessoa de muitos reumatismos sem esperança de cura, que morrera de constipação estival.Bebia muito para estar distraído.
O que meu pai possuía e o fazia rico, viera tudo de meu avô Alberto Figueira, o das barbas do retrato, que andava a maior parte do dia e às vezes, à noite comigo, nos sonhos e tudo, por que eu gostava muito dele e tinha o mesmo nome acrescido do apelido Ramos, por parte de minha mãe.
- Uma sacanice de meu cunhado - dizia meu pai que, no Registo Civil indicara apenas o nome de meu avô para mim.
- E o apelido da mãe? - Perguntara meu tio e padrinho a querer sobrecarregar-me de nomes.
Assim, enquanto eu me chamava Alberto Ramos os meus irmãos eram todos Ramos Figueira o que dava a impressão, à primeira vista, que não éramos da mesma família. Ser duma família qualquer cria sempre responsabilidades. No Liceu todos os professores e até os meus colegas me chamavam Ramos o que me causava um certo desgosto. Sendo filho do senhor Figueira e sendo por isso um Figueira da melhor madeira, um nome de tantas tradições, estava a ser perdido em mim e, como depois de minha irmã era eu o mais velho, estava a ser uma espécie de morgado com o nome trocado e perdia uma tradição tão histórica assim do pé para a mão. Diziam até que houvera nos meus antepassados um homem tão forte que matara à paulada uma jibóia de proporções gigantescas, como convém a actos de tanta heroicidade.
Durante muito tempo andei com a preocupação de fazer qualquer coisa que ainda ninguém tivesse feito para que caíssem sobre mim as atenções dos populares e a admiração dos restantes elementos da família. Queria ser herdeiro de qualquer coisa. Mas não encontrei nada que fosse capaz de me elevar a uma posição de relevo. A não ser as corridas de burro com as inevitáveis quedas que ocultava para defesa do meu prestigio e do bom nome de uma família de cavaleiros apeados. E apeados por não me constar que tivesse havido na família cavaleiros de cavalos das lendas que andassem em justas e torneios defendendo damas agravadas. É natural que não houvesse damas agravadas que necessitassem da interferência dos Figueiras. Também é natural que tenha havido Figueiras a desagravarem damas mas nada havia em casa de meus pais que lhes fizesse referência.
O burro, esse sim, foi sempre o animal preferido para as cavalgadas de meu avô e de meu bisavô. Só meu pai, por desentendimentos antigos com esse nobre animal se deslocava, habitualmente, em bicicleta dumas quintas para outras tendo quebrado, por um lado, uma tradição de família e reforçando-a pelos outros.
O meu avô nunca casara. Talvez por falta de disposição. Ou de vocação. Ou por outras razões só dele e não explicadas enquanto vivo. Ele não dava explicações dos seus actos. Bastavam-lhe só os actos que eram, quanto a ele, a melhor explicação. Vivia com a senhora Clarimunda na Quinta dos Lobos Velhos, e tinha minha avó na quinta do Cerro Alto que ficava a seis quilómetros de distância pois ela tinha um feitio muito independente, senhora do seu nariz, apesar de ser analfabeta, e fazia o que lhe dava na real gana. Viera muito nova para criada da casa e devia ter sido muito bonita para seduzir meu avô que era pessoa de bom gosto e de muito apetite que logo nela fez um filho, mais tarde meu pai e herdeiro universal de meu avô, que nunca deu nenhum filho à senhora Clarimunda embora gostasse muito dela e fizesse todos os possíveis.
Quando morreu deixou, à senhora Clarimunda o usufruto da Quinta das Andorinhas o que foi sempre uma espinha atravessada na goela de meu pai. Que só a tirou quando ela morreu. Dela, em minha casa não se podia falar, porque era proibido em último grau, e o meu pai, quando falava era sempre com bastantes arrelias na voz e muitas pragas à mistura para ajudar. Eu gostava dela pois também o meu avô gostara e os sentimentos dele estavam um pouco em mim. Meu avô sabia as suas razões. Os bons motivos que o levaram a viver, uma vida inteira com a senhora Clarimunda e não com a minha avó. Isso causava-me uma certa estranheza só dissipada quando mais tarde me explicaram a verdade que, em casa, toda a gente cultivava, muito religiosamente, no segredo. Coisas que as crianças nunca entendem bem para que os adultos possam ser umas pessoas respeitáveis.

1 comentário:

Anónimo disse...

Bonita homenagem a uma família com história...

Beijos

Mité