Contos, Fotos e Histórias do Marquês da Ajuda, Cacela e Sta Rita

sexta-feira, fevereiro 24, 2006

CONTO XVI





Tinha pssado um mês no calendário quando o marquês voltou a encontrar o pai:
Minha mãe viu-me a brincar com Leão, o cão de guarda da quinta, muito satisfeito da minha vida e julgou que ainda não tivesse falado com o meu pai sobre o meu fracasso dos estudos.
- Já falaste com o teu pai?
- Sim, mamã.
- E o que disse ele?
- O costume.
- Não te bateu?
- Ainda não. E se me bater fujo de casa.
- Tem juízo, rapaz. E o que fará um moço destes fora de casa como um vadio sem família?
- Ora! Vou guardar gado ou servir ou qualquer coisa.
- Depois sou eu que tenho de aturar o teu pai.
- Fique descansada que me encarregarei de resolver os problemas com ele.
- Isso é muito bom de dizer, lá isso é. Mas eu é que tenho de o ouvir. A dizer-me que sou a culpada de tudo. O que eu sofro com isto!
Minha mãe era especialista em sofrer por ela e pelos filhos e na inocência da nossa idade achávamos piada que ela sofresse tanto como dizia. E ainda tinha tempo para cantar e para rir. A mim não me interessavam as culpas que ela tivesse ou que meu pai dissesse. Quando ele me batia, ou se zangava comigo, com o seu ar feroz, assustador, como se fosse um carrasco de crianças a vingar-se de ser um homem, minha mãe nunca intercedia a meu favor e eu acabava por me encontrar tão abandonado como barco naufragado em mar alto sem velas e sem remos.
- Não tem juízo nenhum este moço! - Exclamava ela com as mãos, ambas postas na cabeça, quase no fim da testa que era o local das suas dores.
Se aos catorze anos tivesse o juízo das dores de cabeça lá ia levada pelo tempo a vontade grande de brincar.
Quem tinha perdido o ano era eu e ninguém tivera culpas disso. Nem os professores que tinham procurado que me interessasse pela matéria, nem eu porque não tivera interesse nisso. Não me interessava estudar. O meu avô também nunca andara a estudar e viveu durante setenta anos. Sabia ler e escrever e diziam até que era uma pessoa muito entendida em leituras. Que até fazia versos para que os outros cantassem.
Cantar no tempo do meu avô ajudava a esquecer. Cantar seria no meu tempo uma boa profissão, muito bem paga e as pessoas ouviriam cantar sem estado de espírito, sem alegria, sem nostalgias nenhumas, sem esperanças nenhumas. Só porque tinham pago o bilhete para ouvir. Seria uma espécie de fabricação de alegrias ouvidas com tristezas e penas.
Não me interessava estudar. Tanto me fazia ter perdido o ano como não. Não diria nada a meu pai pois a vontade dele seria, certamente, que eu continuasse. Para que discutir com ele o que depois iria ser o que ele quisesse sem apelo nem agravo? E eu continuaria até que meu pai visse com os próprios olhos ser desnecessária tal teimosia. Com catorze anos não podia ser responsável por nada. E iria fazer os possíveis para que toda a vida me considerassem da mesma maneira para me ser mais fácil viver. As pessoas que eu conheço andam muito convencidas de que são importantes para que o mundo ande certo mas quando morrem o mundo continua a andar e ninguém dá pela sua falta. Durante uns tempos a família ainda fala deles mas depois esquecem-nos. Só no dia de finados é que vão ao cemitério com umas caras muito adequadas à ida para demonstrarem aos vivos que não se esqueceram dos mortos.
Era isso que os livros ensinavam e as pessoas decoravam para repetirem em datas e ocasiões adequadas.
No dia de finados choravam os mortos, das tantas às tantas, na hora determinada para os prantos e lutos renovados.
No Carnaval brincavam na rua e atiravam papelinhos coloridos uns aos outros e sacos com cinza. Eu julgava que era farinha e só vi que não era quando apanhei com um na testa que se partiu e quase me cegava. Enquanto todos acharam muito engraçado, muito certeira a pontaria, muito natural a minha indignação. Pulhas! A vontade que me deu nesse momento foi ser capaz das maiores façanhas, daquelas que os guerreiros faziam de desbaratar um campo de inimigos à espadeirada sem a mais pequena dificuldade. Mas era uma criança e não tive coragem de ter a força desses gigantes que vinham no livro de história. Se eles sabiam que uma criança não se podia defender a obrigação deles era respeitá-la. Grandes canalhas!
No Natal as pessoas festejavam, por ser velho costume, com a família, o nascimento do menino Jesus e, por causa dele nascer todos os anos, havia até uma certa compreensão de uns para os outros. O meu pai nesse dia era um pouco diferente e, se não fazia bem a ninguém, também não impedia que os outros o fizessem. Eu achava que devia ser Natal durante todos os dias do ano por que todos os dias nasciam meninos pobres que não tinham culpas nenhumas e que muitos deles estariam condenados a morrer, um dia, crucificados na vida sem um lenho ao menos que lhe servisse de cruz.
Estudar para aprender desumanidades ou para ter boas notas não me interessava mesmo nada. Se antes dissera ao meu pai que preferia estudar em lugar de trabalhar no campo agora a minha opinião era um pouco diferente. Já preferia deixar a minha sorte ligada àquelas gentes rudes um dia e outro presas à condição de escravos, mas que eram verdadeiras. Que não riam nem choravam por terem aprendido nos livros. Fui para a sala onde estava o meu avô que não me disse nada com os seus lábios de retrato. Apenas olhou para mim com os seus olhos de me seguirem sempre para qualquer lado da sala para onde eu fosse. Sem uma palavra de recriminação por eu ter perdido o ano. Ele compreendia perfeitamente os problemas porque também a si lhe interessara mais a vida do que os estudos. É certo que no seu tempo não se estudava tanto mas, pelos vistos, nem era preciso estudar para que as pessoas fossem melhores umas para as outras. Isso provava-me que estudar só servia para tornar as pessoas ainda piores embora para o meu pai fosse importante a consideração dos canudos. Meu avô olhava para mim com os seus olhos de não ser compreendido, com os seus olhos de olhar definitivamente e sempre da mesma maneira para todos, excepto para mim. eu pai regressou ao pôr-do-sol. - Explica-me lá como reprovaste - disse-me
Trazia na mão uma vara de oliveira da grossura do dedo polegar. Dedo grosso e sapudo.
Qualquer que fosse a minha desculpa de nada serviria pois a vara era a prova evidente da sua determinação. Pensei em fugir e tive medo que as pernas me atraiçoassem as ideias.
- Então? - Perguntou com os seus ares inquiridores vizinhos da vingança justiceira dele.
Encolhi os ombros. Até metê-los dentro do mesmo corpo onde estava guardado o medo.
A vara, nas mãos de meu pai, começava a bailar a insatisfação da inércia. - Se eu fosse órfão! - Pensei.
A vara caiu-me sobre as costas gravando na pele as raízes da dor rasgando a carne, com picadas de calor, a arder cada vez mais. Depois, entrei, oficialmente, de férias.

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