Contos, Fotos e Histórias do Marquês da Ajuda, Cacela e Sta Rita

domingo, janeiro 01, 2006

CONTO XIV


Simão Carolo tinha a taberna em frente da Farmácia. Era um optimista casado com Lúcia Zarolha a do lugar de frutas e hortaliças na praça de Venda Nova e muita vaidade por ter os melhores nabos da região, trazidos directamente do lavrador. Que, neste caso, tratava-se do meu pai, o senhor Venâncio, abastecedor também de outras senhoras da terra. E dizia-se muita coisa sendo minha mãe a que mais falava.
A Zarolha tinha um olho de vidro e, quando olhava para alguém, fixava o olhar tão insistentemente, com aquele brilho de cristal derretido que o Ratinho se apaixonou por ela quando regressou de Espanha e lá fora molhar a goela com meio litro de vinho numa garrafa que só levava três decilitros.
Amor traiçoeiro e não correspondido desde aquele dia em que ali entrou pela primeira vez.
- Meio litro - dissera.
- Do tinto ou branco ? - perguntara ela.
E o olhar cravado nos sentidos dele.
- Tinto.
Habitualmente bebia branco. Mas as palavras dela pareciam aconselhar-lhe o tinto.
Ela a olhar para ele sem desviar os olhos, sem fechar o olho que restava, agressiva e prometedoramente metido na alma do Ratinho a roubar-lhe o sossego do seu instinto e a liberdade dos pensamentos vagabundos.
Desde esse dia era na taberna que estava sempre. Esperando ouvir dela uma palavra que o incitasse a uma declaração do seu amor inflamado. Mas nada sucedeu se não aquele olhar a continuar caido sobre as ideias do Ratinho.
O Simão sabia da paixão dele, pela mulher, mas, como era inofensivo e deixava ficar na taberna o dinheiro que tinha, nunca se impôs. Nem sequer se assustou ao ponto de pedir desforço de tal paixão para conserto da sua honra aos olhos dos olhos.
Quando o Ratinho deixou ali o último tostão da herança o Simão aproveitou
-se dele para lhe trazer a água do poço e, por esmola segundo dizia, dava-lhe uma sopa e um copo de vinho do pior.
- Temos de ajudar estes desgraçados. - dizia a torto e a direito para fazer valer a sua caridade.
E para que dissessem que cumpria as suas obrigações como político atento, pois era cabo de ordens bastante considerado e, segundo opinião de alguns, informador do regedor, o Senhor Ferramacho, que por sua vez também era muito considerado e informador de quem estava por cima dele, que também informava quem estava por cima de todos.
As pessoas diziam que a politica era assim uma coisa de não se saber bem e que o senhor prior também era um grande politico. Ele fazia que não era nada com importância e continuava a sua ladainha em latim e quando as pessoas morriam todos ficavam muito contentes com a encomendação do morto.
- São umas santas palavras que ele diz ! - Comentavam as pessoas. - Nunca houve morto que voltasse ! Aquilo é que é encomendação bem feita.
Ao lado da taberna, numa casa baixinha caiada de branco com frisos vermelhos, morava dona Branca Farroba casada segundo todas as boas tradições com o Belmiro Farroba, industrial de cordoaria artesanal doméstica com saidas para o exterior, que tinha o lábio superior rachado junto à prega feita pelo nariz e descendo até aos dentes. Desse matrimónio existiam cinco filhos, cinco lindas crianças descalças, que o sol lambia abundantemente. Nunca constou que estivessem doentes, demonstração que a natureza estava certa naquelas vidas tão incertas.
- Quando tiverem alguma coisa é logo para morrer - diziam as pessoas experientes.
O certo é que eles não morreram e que eu iria encontrá-los mais tarde com uma situação de causar inveja a muita gente.
- Sou artista de circo - dissera-me um quando o encontrara numa terra das suas peregrinações.
- O que fazes ?
- Forças combinadas.
- Com quem ?
- Com o meu irmão.
Foi uma alegria para mim tê-lo encontrado.
Deu-me alegria a confiança dele na vida. As grandes lições estão, afinal, naqueles que não estudaram.
Dona Branca Farroba e o marido eram excessivamente morenos, quase torrados, semelhando mestiçagem, havendo até muita gente que dizia que eles eram assim escuros porque nunca se lavaram. Mas isso nunca foi devidamente comprovado.
Como os filhos fossem de tez branca, que só o sol mais tarde tostaria, diziam que cada um era filho de seu pai, havendo portanto um pai legal e cinco ilegais. O que também nunca foi comprovado para bem das honestidades, da moral e das próprias crianças que se veriam a braços, cada uma, com vários pais.
Vivia o casal, não obstante o que se dizia, na mais santa concórdia e nunca houve quem melhor se desse em Venda Nova ou arredores. Se Dona Branca não era rica e de altas virtudes hereditárias, para o marido era pelo menos a mais virtuosa da terra. Nunca ele diria a ninguém, como tantos, quando falasse das sãs e honestas senhoras :
- Esta eterna dúvida !
Belmiro Farroba industrial de cordas feitas à mão e um dos principais consumidores de tinto não duvidaria nunca de sua esposa.
- Tinhamos de o trazer às costas para casa - dissera-me o artista de forças combinadas.- O gajo nem podia andar.
- E não custava ?
- Punheta, se custava ? E às vezes o gajo lembrava-se de se ir embebedar para longe de casa. Ia eu e o meu irmão. Púnhamos o tipo no meio. O gajo tinha a mania de cair para um lado, era para o meu lado, eu dava-lhe um encontrão " Eh pá aguenta-te nas curvas " e lá conseguiamos trazer o bicho para casa.
Dona Branca tinha uns cabelos muito pretos e lisos, com brilhos estranhos que lhe davam um aspecto de originalidade nunca conseguida embora imitada por muita senhora. Estavam divididos ao centro e caidos sobre os ombros, metade para a frente e outra metade para trás, sempre soltos e ondulando no seu andar de rainha. Tinha olhos pretos e expressivos, muito abertos, para que o sol e o mundo neles se reflectissem, sempre a olhar para a frente como se quisesse apanhar com eles o futuro cravado no horizonte longinquo e a desconhecerem, por ínfimas, as coisas que perto se achavam. O lábio inferior, grosso , enorme, original, virava-se para baixo como se estivesse derramado a escorrer contornos infindáveis, estendendo-se preguiçosamente até quase alcançar o queixo pequenino o que lhe dava um ar de exotismos diversos,estranhos e risíveis. Com um sorriso trocista de zombar de tudo o que era mesquinho, fútil, pequeno. O que era dos outros.
Era pobre como ninguém. Sem medo de ser mais pobre ainda. Mas tinha umas maneiras tão refinadas, tão aristocráticas, tão soberanamente altaneiras que, em Venda Nova, quase ninguém as entendia. Usava uns trajes muito usados e até, segundo algumas opiniões, um pouco arriscados para a época que se vivia, pois as pessoas demasiadamente agarradas à tradição recusavam-se, teimosamente, a aceitar o progresso imposto por Dona Branca com sua blusa leve, vaporosa de farrapos coloridos, que lhe mostrava bocados fartos de pele acobreada dos braços, dos ombros, das costas e do seio, desabotoando-a ainda para mostrar melhor a linha divisória dos peitos bamboleantes com o seu caminhar airoso de chinelas velhas arrastadas nos seus pés pequeninos e morenos com perfumes de poeiras.
Quando passava na rua Direita, a única de Venda Nova, por sinal bem tortuosa, começando por uma curva apertada e acabando noutra, parecia uma rainha saida de seu palácio rebolando as ancas fartas num bailado fofo de carnes doces e quentes com aromas de instintos, com os peitos rebeldes a quererem sair pela coçada blusa, sempre a oscilarem dum lado para o outro e de cima para baixo.
Quando alguém perguntava a Dona Branca se os filhos eram todos do mesmo pai ela respondia a rir, mostrando cara de muito zangada :
- Mas que exagero ! Sempre me fazem cada pergunta ! E que importância tem isso para vocês ? Ou para as crianças ? O que interessa é que os meus filhos nasceram , como nascem todas as crianças e que são saudáveis. Não é isso o importante para elas e para mim que sou mãe ?
As pessoas não diziam nada.
Ela era, para todos, fácil. Compreensiva e acessível. Partilhada sem zaragatas. Mantendo sempre o seu ar distinto e dificil. E ausente.
Belmiro Farroba andava sempre com um molho de pita debaixo do braço, fazendo corda enquanto palmilhava a Rua Direita dum lado para o outro, com pequenos descansos na taberna do Simão para molhar a goela. Acreditava na fidelidade da mulher e alto e bom som clamava as suas crenças afirmando que casara com uma verdadeira senhora.
- Ela não liga importância a isso - dizia o Farroba torcendo e encaneando a pita com a vaidade de ser um especialista em trabalhos de corda e um industrial honesto e cumpridor.
Entre dois copos continuava a explicar:
- Seria a mulher mais virtuosa de Venda Nova se não lhe dessem aqueles malditos ataques. Mas não me quer ao pé de si para não me fazer mal. Coitada ! Arranhava-me sempre como se fosse uma gata bravia. É da doença. Quando ela está assim nem vou para casa.
A corda nas suas mãos dançava um bailado rodopiando em convulsões estranhas para cair aos seus pés inanimada.
- A gente vai-se habituando a tudo - concluia com a sua filosofia de aceitação das realidades para que os sonhos não voassem desnecessáriamente. Para que ficassem presos nas cordas e nos seus pensamentos.
Em certas ocasiões tapava-se Dona Branca com um velho xaile espanhol, de cores desbotadas, quase até ao nariz.
- Para não criar desejos nos homens porque eles são todos uns pecadores e a carne é uma tentação - dizia ela.
Andava menstruada.
Depois, como uma flor aberta para o sol, aparecia novamente na rua com os seus trajes leves mostrando as carnes para as tentações de todos os pecados nascendo e ficando nos homens de Venda Nova que tinham o terrível hábito de pecar.
O Farroba gabava-se que não havia ninguém na Vila nem fora dela que fosse mais completo do que ele. Que cortava as folhas das piteiras e as ripava com todos os cuidados e preceitos .Que fazia as melhores cordas da região.
Meu pai comentava :
- Uma merda de cordas !

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