Contos, Fotos e Histórias do Marquês da Ajuda, Cacela e Sta Rita

quarta-feira, dezembro 14, 2005

CONTO XIII

Vila Nova de Cacela era Venda Nova, rua única por onde passava o progresso, tendo o Center Business Distrit uma localização e designação precisa as quatro estradas.
Havia em Venda Nova cinco doutores: três de medicina que ajudavam, o melhor que podiam, os doentes a morrer, um de farmácia que tinha na parede um copo de pé alto e uma cobra enroscada e um de leis que fazia zaragatas e depois acabava com elas, o mais legalmente possível, em tribunal.
O doutor Pardelhas era médico, velho, não trabalhava, andava sempre com frio e uma gabardina e não tomava medicamentos para morrer de velhice. Vivia com uma governante, por que nunca casara. As pessoas diziam que dormia com ela por uma questão de hábito antigo.
O doutor Neves era médico do partido, cobrava quotas mensais, pontualmente, há muitos anos e ficava aborrecido quando alguém aparecia doente. Tinha vindo de fora e durante muitos anos manteve-se solteiro e com umas mãos muito brancas e lavadas por fora pois, como tinha medo dos contágios, lavava-as sempre antes e depois de observar os doentes. Era muito mariola, segundo diziam, porque quando apalpava a barriga das senhoras punha-se com os seus olhos gulosos e esfomeados a olhar para as partes mais íntimas e de serviço caseiro. As senhoras sentiam que as mãos dele deixavam de ser de médico do partido para se tornarem sensuais, preguiçosas e lentas, descaradas, nos movimentos com que procurava despertar nelas ideias pecaminosas. Mas as senhoras como eram decentes e até se tinham lavado por baixo não diziam nada e evitavam ir à consu1ta com desculpas de que ele não acertava nas doenças e queria acertar noutros sítios muito mais perigosos. Foi perdendo, a pouco e pouco, a clientela até ficar reduzido ao fraco ordenado que lhe vinha do exercicio do partido.
Porém, uma cliente ficou para sempre.
Chamava-se ela Felismina Amendoeira Silvestre e vivia num palacete que tinha umas ameias pintadas de vermelho com sua mãe Dona Violante Fagundes Silvestre, viuva de um rico armador que começara a sua vida de pé descalço e com um pequenino barco de pesca, que também servia para fazer contrabando, para com muita honestidade se tornar em rei do carapau. Dona Felismina era tão rica como feia e certamente ficaria para tia se tivesse irmãos se não fossem tantas as dificuldades do doutor Neves. Foi a sua tábua de salvação no naufrágio da vida.
Após o casamento e por vontade da sogra, senhora que tinha uma vontade férrea, mudou-se para Tavira, onde todos viviam, como Deus com os anjos, dos rendimentos, longe das más linguas de Venda Nova que clamavam ter sido um casamento por interesse. Só vinham passar férias ao palacete que ía com os anos diminuindo até ser uma casa vulgar com uma cor vermelha de muito mau gosto. Embora tivesse um tanque com peixinhos vermelhos que o doutor Neves tratava melhor do que aos doentes.
Um verão o doutor Neves apareceu em Venda Nova com um carro novo onde estreara gloriosamente a sua carta de condutor e o Porfirio, motorista das camionetas de carreira, até lhe chamou colega, o que deu origem a um incidente que terminou em tribunal. A posição do Porfirio foi brilhantemente defendida pelo doutor Sargaço ao provar que o seu constituinte tinha agido de boa fé e muito angelicamente ao tratar o médico, pessoa muito respeitável, clinico muito distinto, sumidade, luminar e etc., por colega apenas se referia à circunstância de ambos serem motoristas. Que o Porfírio até descera no seu próprio conceito pois era um dos melhores motoristas, um profissional honesto, um honrado chefe de família e que estava profundamente arrependido de ter usado tal palavra.
Toda a gente ficou encantada com a absolvição de Porfírio e à boca pequena ouviam-se frases como estas:
- Então, Porfírio, como vai o teu colega?
- A mim não me leva ele na camioneta !
- A sorte dele foi ter casado. Ainda morria à fome antes dos seus doentes!
Eu era criança e julgava que era maledicência. Quando cresci vi que era mesmo verdade.
O doutor Campos era médico em Tavira mas vinha três vezes por semana a Venda Nova onde tinha muitos doentes. Fazia as visitas domiciliárias de trem, com uma manta a tapar-lhe os joelhos por causa do frio. Andava sempre a rir e dizia-se que era muito rico. Muito bondoso, até fazia descontos de dez por cento o que muita gente, reconhecida, agradecia, dando-lhe presentes por ocasião das festas.
Quando eu estava doente era ele quem me tratava e,
não me obrigando a tomar os medicamentos, tomava-os todos até os que eram amargos.
Era muito bom médico, segundo diziam, e só morriam os que não escapavam.
A farmácia Alegre ficava no centro de Venda Nova num edificio de um único piso e servia de habitação do doutor Isac Abrão Alegre que era proprietário e director técnico conforme estava numa tabuleta.
Tinha um pátio ladrilhado que dava para a rua principal ladeado por um gradeamento pintado de verde e junto à janela que dava para a sala onde estava a farmácia havia uma palmeira a cuja sombra se sentava, numa preguiceira o doutor Abrão.
Pessoa cheia de carne, como os porcos gordos de meu pai antes da matança, andava sempre suando muito no verão e tinha quase setenta anos. Estava casado, em segundas núpcias com Dona Felcidade Alegre, senhora dos seus trinta anos de idade, muito bonita, cheirosa e pintada.
A porta de entrada para a habitação e para a farmácia era a mesma e tinha sempre uma rede de pesca para evitar que as moscas entrassem e saissem. Em Venda Nova havia moscas e pessoas suficientes - uma pessoa para várias moscas, e muitas moscas em cada pessoa - que olhassem para elas e para as outras coisas que ainda interessavam menos do que as moscas e que muito as preocupava. A tal ponto que abandonavam tudo o que estavam a fazer para presenciarem. Para comentarem depois. A farmácia estava sempre aberta até à meia noite para se poder aviar as receitas. A porta dava para um corredor que tinha vasos de flores dum lado e do outro e o corredor chegava até à porta da casa de jantar. Do lado direito ficava a porta para a farmácia e que comunicava com o laboratório por um arco no qual estava inscrita essa indicação. Era onde o doutor Abrão, de bata branca e com ares muito so1enes e atentos, misturava os pós e preparava os medicamentos que constavam nas receitas com umas letras tão mal feitas que só ele entendia por que tinha estudado muito para saber ler aquelas caligrafias de levar réguadas se fossem de meninos que andassem na escola.
Do lado esquerdo era a salinha onde tinha um rádio Telefunken em cima duma mesinha de verga, ligado a uma bateria, com cadeiras também de vergas espalhadas pela sala, com almofadas coloridas em profusão.
Quando havia dasafios internacionais de futebol as pessoas mais gradas da terra entravam para a sala, as mais ricas ou categorizadas ficavam sentadas, outras ficavam da pé e íam ocupando o corredor em estratificaçao social até à rua. Como o doutor Abrão era muito patriota abria a janela que dava para o pátio para que toda a gente pudesse ouvir o relato do desafio. Um Portugal-Espanha era motivo para demonstração insofismável de lusitanismo e embora se perdesse sempre e por diferença muito volumosa toda a gente saía dali com a impressão que fora para nós uma retumbante vitória moral pois o doutor Abrão, com a autoridade que lhe dava ter um rádio Telefunken, fazia uma alocução que deixava todos satisfeitos e vingados falando de Aljubarrota, da ala dos namorados, do Condestável que antes da peleja rezara a pedir a vitória. Falava, também, da Restauração, em 1640, e da expulsão justa dos invasores.
Dona Felicidade Alegre era loura cor de seara e tinha o cabelo cortado à garçon, moda muito usada nessa época. Andava sempre muito pintada a toda a gente a censurava, pelas costas. Era uma senhora que pintava os lábios com um baton romã vermelho.
Falavam de tudo, falavam da Dona Felicidade que era uma senhora e das muitas paixöes incendiárias dos homens por ela.
O que é certo é que nunca em dias da minha vida vi incêndios ou bombeiros em prevenção.
Tudo corria o mais normal possível para Venda Nova.
As camionetas cumpriam as carreiras entre Faro e Vila Real dentro das horários debaixo da superior condução do Senhor Porfírio e do cobrador Chumbado Coelho.
Um motorista tinha tanta importância como um doutor desclassificado e a chegada da camioneta a Venda Nova era um acto tão importante a revestia-se de tal solenidade que só seria igualada quando os americanos fossem à lua com os seus foguetões e todas as aparelhagens montadas em Houston, U.S.A..
A importância da chegada da camioneta era um facto verificado e comprovado, diáriamente, com o mesmo interesse para as gentes da terra e só o progresso é que se encarregaria de destruir, lenta e calmamente, essa importância, com os seus dentes de conquistas devoradoras do futuro. A camioneta businava à entrada da povoação e as pessoas despertavam do seu letargo e vinham para a estrada olhando para os relógios, admirados da precisão com que se cumpriam os horários. Os barbeiros deixavam os fregueses sentados nas cadeiras, com sabão a secar-lhes na cara e vinham à porta, de navalha na mão a luzir brilhos, para se inteirarem das novidades. Que comentavam enquanto faziam barbas ou desfaziam cabeleiras aos clientes. O Balbúrdia, que arranjara a alcunha graças ao seu falar atabalhoado, ía mesma à camioneta para saber notícias doutras terras e era o cobrador, o Chumbado Coelho, que o informava com o maior número de pormenores o que se passara em Faro, Olhão, Tavira, etc..
Porfírio abria, com a custumada solenidade, a porta da camioneta e saía para a estrada onda ficava a desentorpecer as pernas, de tal moda que ninguém, nem mesmo as crianças, eram capazes de imitar. Ficava ali, estendendo os braços para trás e para a frente, dobrando o corpo para os lados enquanto flectia as pernas e as atirava, ora para a frente ora para trás, como se estivesse a dar pontapés numa bola de futebol. Dando tempo a que as senhoras o vissem. Depois dirigia-se para a taberna do Simão Carolo onde bebia, regaladamente, um pirolito.
O cobrador descarregava cestos e sacos do tejadilho atirando-os para o chão duro de alcatrão ou para as mãos dos passageiros que ainda agradeciam. Depois exigia que subissem os dois primeiros degraus para que lhe pusessem ao alcance das mãos as bagagens a carregar.
- Dê lá um geitinho, amigo ! dizia ele.
As pessoas esforçavam-se um pouco mais ainda e davam o jeitinho necessário, sem um agradecimento.
Quando tudo estava despachado o Chumbado começava a campainhar puxando por uma correia, de cabedal, velha e suja, que estava pendurada no tecto da camioneta e, se o Porfírio não aparecia logo, businava três vezes, que era o código deles para se cumprir o horário. Então, o Porfírio, vinha com todos os vagares em direcção da camioneta, com os seus ares misteriosos de saber pôr tudo aquilo em movimento a levar as pessoas dum lado para o outro.
- Está tudo ? - perguntava ao Chumbado.
- Tudo.
Businava uma vez mais. Depois a camioneta lá seguia o seu destino, cumprindo horários, com alguns retardatários ainda ocupando os seus lugares.
- Vamos lá sentar- pedia o Chumbado Coelho.
O Balbúrdia ía ensaboar de novo a cara do freguês quase adormecido na cadeira.
As moscas dançavam os seus bailados monótonos, pachorrentos, tranquilos, sem se cansarem de seus ritmos.
Venda Nova ficava outra vez a mesma. Sem camionetas. As mesmas pessoas. Como um rio parado.

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