Contos, Fotos e Histórias do Marquês da Ajuda, Cacela e Sta Rita

quarta-feira, dezembro 14, 2005

CONTO XII


Nem eu, cem anos depois, saberia o que tinha sido o futuro.
Apenas me tinha chegado o retrato para interrogar; e as datas por de trás para conferir; e pequenas notas alinhadas de registos indecifráveis dispersos pelo forro da moldura:
Mas ninguém sabia o que iria ser o futuro.
Tudo se passaria como se as pessoas andassem de olhos vendados e só se apercebessem o que ele significava quando já tivesse passado.
Isso não impedia que eu pensasse em coisas que não estavam adequadas à minha idade e fazia-o com todos os segredos, cautelosamente, para que ninguém desconfiasse de nada. Achava que tinha todo o direito da pensar como pensava embora não tivesse idade para isso.
Pensava que teria sido bom viver com o meu avô, guiando os seus passos cansados, para que ele me ensinasse a ser neto e falasse, visse e ouvisse comigo. Mas também pensava que, para ele, devia ser mais interessante ter morrido com setenta anos, só para não ver mais, para não ouvir mais, para não pensar mais, para não estar mais interessado em tudo o que poderia ter feito e não fez. Para deixar que os outros fizessem melhor. E para saber, mesmo no seu silêncio de morto, que os outros nunca serão capazes de fazer melhor do que as gerações anteriores, embora digam que o estão fazendo.
Pensava que o meu avô tivera razão em morrer, por que há razões para tudo e os avós terem de morrer é uma razão muito forte. Muito mais forte do que os jovens morrerem nas guerras, mesmo que pertençam aos vencedores.
Eu gostava muito do meu avô. Que tinha morrido para si mas que vivia nas pessoas, em mim e nas coisas que me rodeavam. Gostava tanto dele que muitas vezes tinha vontade de lhe pedir que descesse do retrato para me beijar com aquelas barbas de santo, apóstolo ou profeta, não sabia bem. E depois tinha medo que ele ouvisse os meus pensamentos e viesse, embora fosse coisa impossível e de espantar descer do retrato para me beijar.
Como seriam as barbas do meu avô se fossem vivas e não estivessem ali arrumadas no retrato, mas ondulando ao vento?
Como seriam os ouvidos do meu avô para mim ?
Se ele tivera ouvidos pacientes para toda a gente também os teria para o seu neto. Talvez ainda ouvidos mais complacentes dos que os das histórias das bondades que os outros contavam dele.
E tinha dívidas. As dívidas praguejadas por meu pai.
Eu não lhe dava razão, ou ao que ele dizia, por que falava dum morto e do seu próprio pai. Uma pessoa que não podia defender-se tinha, para mim, qualidades que não tivera, talvez, para mais ninguém. As coisas importantes existem para as crianças que acreditam nelas.
Tinha reprovado no segundo ano, era mau aluno, mas era um problema meu. Por que os estudos só a mim poderiam fazer doutor e ser importante. Como meu pai dizia dos outros doutores.
- É tudo deles !

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