Contos, Fotos e Histórias do Marquês da Ajuda, Cacela e Sta Rita

quarta-feira, dezembro 07, 2005

CONTO XI

A história repetia-se, geração após de geração, desde a invenção dos sonhos e dos canudos. Então, revejo o inesquecível Bolero de Ravel percorrendo o drama de Les uns et autres de Claude Lelouch e a seguir registo o que me dizem :

O meu pai queria para mim um canudo que era, afinal, o seu. Os sonhos dele, em mim, para que eu os realizasse.
Aos doze anos encaminhou-me para a estrada que leva aos destinos dos outros, para o que julgava ser melhor na transformação de uma criança em homem, mas a vida à minha frente seria muito diferente da dele habituado a manejar a vontade dos outros com o seu poderio económico.
Aos catorze anos perdera o ano. Mas tinham passado dois anos importantes para mim, sem a necessidade de ter aproveitamento nos estudos. Tinha aprendido nesses dois anos o que não vem nos livros. Que vem nas pessoas e na vida. Tinha fugido durante esse tempo à vida amarga dos campos, àquela vida sem esperanças, àquela morte feita de mil misérias quotidianas, por uma escolha inconsciente. Sem saber se era mais feliz do que aquela gente que nunca se queixava, mas julgando sabê-lo porque era filho daquele senhor tão importante que não me obrigava a comer papas de milho e pão seco com azeitonas que caiam, podres, das oliveiras.
Eu nascera diferente ao ser filho dum homem que toda a gente teme e respeita por que está nas suas mãos de ferro e agressão o pão que comem. Do homem que vai de uma quinta para outra montado orgulhosamente na sua bicicleta que tem farolim de carbureto para não perder velocidade. Ou para que o progresso do dínamo não o obrigue a usar mais força para se deslocar.
Toda aquela gente arrastada de servidões antigas tinha ficado satisfeita quando eu nasci como se pudesse ser para eles uma esperança de futuro melhor. Mas iria ser mais um elo que tornaria maiores as prisões, se não houvesse um outro futuro independente das pessoas, para fazer dos seus filhos seres idênticos a viverem uma continuidade de servidão nos mesmos moldes.
O futuro estava esperando por todos, com os dentes afiados do tempo, e durante quarenta anos seriam desfeitas muitas concepções sem lágrimas desnecessárias de ninguém.
Sem o saberem, eles tinham ficado satisfeitos com o meu nascimento pois que eu era o futuro que esperavam ou uma esperança de regresso a um passado que fora mais humano e mais compreensivo com as classes mais desprotegidas.
Um desses trabalhadores, quando eu tinha um ano de idade e de gatas procurava descobrir o mundo dos outros, evitou que eu tivesse caído dentro dum poço com dezasseis metros de profundidade, onde certamente me teria afogado. Agora, que tenho catorze anos e a consciência de muita coisa que não sei bem, acho que teria sido preferível que me tivesse ignorado e me deixasse afogar. Não teria perdido o segundo ano do liceu. Nem teria futuro. Nem passado. Tudo teria ficado no fundo desse poço e para mim não teria havido lágrimas dos outros. Nem as minhas que nunca serviram para tornar as coisas diferentes. Que apenas ficaram com lágrimas desnecessárias, esquecidas até por quem as chorou.
Aos catorze anos, embora não fosse ainda ninguém para os outros porque era uma criança inocente já era um pouco de alguém para mim naquilo que pensava. Os meus olhos estavam abertos para o mundo e os meus ouvidos traziam-me palavras que me obrigavam a pensar. Sentia-me injusto comigo e com os outros ao mesmo tempo que descobria o meu mundo e o mundo dos outros.
Quando os trabalhadores comiam pão e azeitonas falavam do meu avô, o pai de meu pai, e contavam histórias bonitas de comidas quentes. Contavam bondades antigas como se fosse possível vê-las repetidas com humanidades recentes.
E contavam mundos possíveis num mundo de coisas e de pessoas impossíveis.
As pessoas não sabiam ainda que a melhor maneira de ser humano só podia ser conseguida com novas formas de justiça social. Apenas os sábios, os filósofos, os poetas e sonhadores e as crianças estavam pensando nisso e davam o seu sangue em troca das suas ideias. As pessoas estavam esperando, inutilmente, um regresso ao passado para a constituição dum futuro melhor e cultivavam as flores da tradição.
O meu pai lamentava-se que meu avô deixara dívidas e que nunca tinha dinheiro, por culpa do pai. E eu também nunca tinha dinheiro porque o meu pai não mo dava.
O meu avô tinha morrido antes do meu nascimento e deve ter tido muita pena de não me ter conhecido. Nem eu, nem ninguém, lhe poderia já dizer as queixas do meu pai. Eu também não lhe podia dizer que ele, afinal, fora justo pois que vivera como fora capaz. Não aparecia para negar as palavras do filho ou as bondades de que os trabalhadores falavam. Continuava só a ser a esperança daquela gente sem esperança que voltava os olhos para mim na vã tentativa de verem repetido um passado no futuro que eu representava. Mas o passado já tinha voltado as costas a toda a gente.
Eu vivia inconsciente em mim. Era uma criança que não aprendia as lições dos livros e sem poder ser medido por essa leitura. Estaria destinado, para mim, que nunca seria um senhor importante, por ter um canudo dos sonhos de meu pai, mas a época seria também a da desvalorização dos diplomas pois os próprios diplomados se encarregariam de os manchar ou de os tornar inúteis e sem importância. Hoje toda a gente sabe isso, mas quando eu tinha catorze anos ainda ninguém o sabia. Quando o souberam já era tarde de mais para se apagarem os actos construidos no dia a dia de quarenta anos.
Meu avô continuava morto. Irremediávelmente esquecido de si, da sua época, dos seu erros. De todos. Esquecido de mim. Lembrado em mim pelas palavras dos que o tinham conhecido, dos que o tinham desejado como vivo para ressuscitar uma época apagada pela geração de meu pai.
Lembrado em mim pela fotografia da sala. Onde ele estava sempre quando eu queria encontrá-lo. O meu avô, humano dos outros, contido pela moldura do retrato.
O meu avô de barbas grandes no retrato pendurado na parede da sala olhava para tudo e via tudo com os seus olhos de retrato, sem uma palavra ou uma censura para o seu filho sem um aplauso para a minha ternura.
Às vezes dava-me vontade de lhe pedir que descesse do retrato e viesse ver os trabalhadores comerem pão com azeitonas. Que viesse para escutar com os seus ouvidos as histórias bonitas que eles contavam. Mas não pedia nada porque seria uma doidice pedir a um retrato um coisa dessas.
Pedia só, o melhor que podia pedir como criança, por dentro de mim, no silêncio das minhas palavras e do seu ouvir. Pedia e tornava a pedir até ver nos olhos do meu avô um olhar de compreensão. Porque ele compreendia tudo o que eu pensava e via tudo o que eu não dizia. Porque ele tinha vivido também, sabia bem desse ofício de viver e morrer, teria chorado por si e pelos outros sem que ninguém lhe pedisse. Sem saber sequer que eu seria um dia mais tarde o seu primeiro neto e que me iria acompanhar, em cada momento da minha vida, morto em si, mas vivo em mim. Ele sabia isso porque não tinha outro futuro senão o que levara consigo quando morreu. Ele não sabia, mas eu sabia-o. E contava-lho sempre que podia porque estava sempre à minha espera no retrato da parede.
Minha mãe entrava, às vezes, na sala e encontrava-me muito compenetrado em frente do retrato nos diálogos do nosso silêncio. E dizia-me sempre, mesmo que nada lhe perguntasse :
- Aquele senhor das barbas é o teu avô.
- Já sabia, mamã.
- Morreu há muitos anos.
- Era boa pessoa ? - perguntava eu só para ouvir o que a minha mãe iria falar elogiosamnente.
- Dizem que sim... Que eu não conheci bem...Tinha umas barbas muito grandes.
Essa era a evidência do retrato.
- Morreu novo ?
- Tinha setenta anos.
- Já era velho.
- Sim - respondia minha mãe.
- Gostava de o ter conhecido.
- Morreu antes de tu nasceres.
Minha mãe explicava o que sabia sobre o meu avô mas não me dizia o que eu já sabia...
- Vai brincar para a rua - rematava ela.
Eu dava um último olhar ao retrato sem dizer nada, fixando os meus olhos nos do meu avô. Era a nossa despedida. Eu era uma criança e ninguém liga importância aos disparates ou as crenças das crianças salvo quando têm interesse nisso.
Sabia que meu avô morrera três anos antes do meu nascimento, que eu tinha o nome dele e ainda mais um nome de família de minha mãe e sabia muito mais coisas que me contavam os estranhos, mas não dizia nada a ninguém. Nem a minha mãe. De resto eu era uma criança e quando se é criança há muita coisa que não se deve saber para que as pessoas mais velhas digam que nós somos inocentes. E que não sabemos o que dizemos ou fazemos. As crianças têm de aprender a ser crianças ainda qua não haja nada que as ensine.
Nessa época ainda não havia jardins escolas que nos ensinassem, devidamente, a brincar e as nossas brincadeiras eram brincadeiras de crianças que não sabiam outra coisa do que brincar sem a ajuda dos conhecimentos dos adultos. Éramos, no fundo, crianças felizes. Não tinhamos complexos por que não tinham sido ainda levados para os meninos que viviam afastados da civilização. Éramos mais irresponsáveis e toda a gente contava com isso. Mas já tinhamos a certeza de que quando fossemos homens iriamos ser como os outros homens e teriamos filhos e tudo para os deixar brincar.
Depois, muitas dessas coisas iriam ser diferentes. O meu pai seria uma pessoa como as outras e depois ainda seria menos porque o mundo do futuro viria destruír o seu.

1 comentário:

jcb disse...

Esta série é excelente. Venham mais contos...