Contos, Fotos e Histórias do Marquês da Ajuda, Cacela e Sta Rita

segunda-feira, novembro 14, 2005

CONTO VI


O pai do marquês saíu do Faustino no seu fiat uno branco, consequência do prémio conseguido nos bilhetinhos do Sr. Zé e lembrou a açorda de marisco que tinha em tempos comido na Ericeira, ainda Flore era sua amante. Por isso e também a pretexto de abençoar o fiat viajaram para Fátima , o pai do marquês e Flore agora já como sua esposa. Passaram pela Ericeira e mandaram vir a açorda de há trinta anos.


No casal, o cheiro a alfarroba já não percorria a casa, que agora era de espíritos e energias ocultas por um biombo coçado. Às vezes o cheiro da cânfora sobrepunhasse ao da madeira queimada na pequena lareira e um ou outro papel meio queimado esvoaçava pela única divisão da casa.

À minha chegada levantou os olhos por cima dos óculos de ver ao perto e leu-me o que acabara de escrever:

A medida do Ruana era uma concha grande que tinha apanhado também na praia. E com os magros cobres que ia obtendo podia comer uma sopa numa taberna qualquer e beber uns copos que o aqueciam por dentro e por fora.

Tinha o seu destino ligado talvez para sempre à taberna, a apanhar hoje conquilhas e viver amanhã de recados, mas ninguém lhe chamava gandulo, como o meu pai se fartava de dizer-me uma e outra vez, sempre que lhe apetecia.

Mas eu tinha, então, a juventude a desabrochar dentro de mim e a sua força cega a levar-me a fazer muitas asneiras, ainda que tivesse de ouvir todos os dias as palavras agressivas e duras de meu pai. E haveria de ser sempre eu, mesmo que me ameaçassem com o destino dos outros. Mesmo que me dissessem que viria a ser, um dia mais tarde, do meu futuro desconhecido, igual ao Paneiro, Arturinho, Ruana, Zé Melão ou Ratinho.

O Ratinho era baixo, forte e com tronco excessivamente desenvolvido.Os cabelos eram escorridos como de um rato saído de caneiro. Tinha uma pêra que terminava em bico e uns bigodes insolentes virados para cima e de pontas afiadas, como hastes de touros.

Era natural de Venda Nova mas abandonara a casa paterna e fora para Espanha onde esteve durante vinte anos. Só regressou após a morte dos pais e, até à sua vinda,ninguém sabia nada da sua vida. Muitos julgavam que ele tivesse morrido, algures em Espanha, sem regresso para ninguém. Foi, portanto, uma surpresa grande quando apareceu com o seu ar muito espanholado, falando um português mesclado com arrebiques salerados e uns olés mais ciganos e castiços que ditos por qualquer espanhol.

Dava saltos mortais que espantavam as crianças, encantadas de tanta coisa bonita, e trepava pelas paredes como se fosse gato fugindo de cão danado. Na parte mais alta dava uma volta ao corpo e descia assim. Mas só fazia essa habilidade em circunstâncias muito especiais. Era quando as pessoas acreditavam que ele tinha sido toureiro em Espanha.

A mim fazia-me muita confusão que fosse preciso amarinhar pelas paredes para se ter sido toureiro em Espanha , e achava muito interessante o que ele fazia e até já experimentara fazer o mesmo sem o conseguir.

Gabava-se que fora um perigoso conquistador de espanholas e assim ia gastando, alegremente, o que lhe coubera da herança com grande desgosto de seus irmãos e sobrinhos que viam delapidado o património que um dia lhes pertenceria de direito pois o Ratinho era solteiro e sem filhos conhecidos. Diziam que era melhor para a família que ele morresse do que andar a fazer aquelas figuras tristes que só serviam para colocar mal o nome respeitado dos Sousas e deixaram de lhe falar. Isso para o Ratinho ainda serviu para ficar mais tranquilo acerca dos familiares que não lhe davam nada, nem nunca lhe dariam, conforme o futuro iria demonstrar com a sua lógica indesmentível.

O certo é que o Ratinho continuava , imperturbável, com o seu destino de nenhum futuro, dançando como um cigano sem acampamento ao matraquear de umas castanholas coloridas e ruidosas que marcavam o compasso dos fandanguilhos e dos seu olés gritados com todo o salero de alma cigana e errante. Quando não dançava e cantava ia pela rua fora, de taberna para taberna, com o seu andar bamboleante de bailarino cansado e, de vez em quando, dizia " Olé ! " com a gana de cantador e a alma vagabunda na voz.

Sucedeu, então, o imprevisto. Descobriu-se em Venda Nova, por um singular acaso, que o Ratinho só gritava os seus olés quando lhe passava ao pé algum corneado, o que causou, como se deve calcular, um pânico tremendo entre os homens casados da vila. Tal foi o problema que, daí em diante, os homens começaram a andar aos pares. Assim, cada um deles ficaria sempre com dúvidas e pensaria, para seu íntimo sossego, que o olé se referia ao outro. O Ratinho, porém, apelando para a sua imaginação, resolveu o assunto à sua maneira, perante o pasmo e indignação dos lesados chifrentos pelos olés displicentes, e se eram ambos cornudos diziam duas vezes olé para que não houvesse dúvidas. Esclareceu o que no campo das virtuosas senhoras se passava em Venda Nova. O que foi muito grave e teve foros de meia tragédia. Os visados representavam uma percentagem que ía além da maioria o que já garantia, muito democraticamente, a tomada de uma posição sem oposição. A sociedade de Venda Nova foi abalada pelos olés do Ratinho e como o homem social tem sempre grandes meios para se defender da minoria perturbadora da boa harmonia estabelecida logo se procurou a solução conveniente e o inevitável aconteceu.

O Ratinho era maluco e não sabia o que dizia. Que ninguém devia ligar importância a um doido que derretera o que era dos pais e andava ao Deus dará sem a noção das responsabilidades com as suas acrobacias de circo e os seu olés de ofender pessoas decentes e respeitáveis que não tinham nada que se lhes apontasse. Que ninguém apontava a não ser o Ratinho.

Este, sem dizer nada, sem mostrar medo da sociedade que o alcunhava de maluco para se permitir continuar com os mesmos defeitos, torcia e retorcia os afiados bigodes e a cofiar a pêra com o desplante de toureiro que acabou as sortes e ficou com o touro vencido a seus pés, agonizante, com babas riscadas de sangue. As guias afiadas do bigode lembravam hastes finas de touro saídas da sua cara de escárnios para agredirem sem palavras a decência das pessoas que não eram malucas e o espaço à sua volta como tábuas de uma arena onde as lides as cansavam até as matarem.

Meu pai profetizava-me um futuro sem futuro e eu iria demonstrar que ele estava redondamente enganado. Que estava errado comigo e com os outros. Que era injusto e só via as coisas sob o prisma do seu interesse e dos seus egoísmos capazes de devorarem as vontades e as esperanças das pessoas. E de uma criança que via o mundo com os seus olhos de verde onde as flores ainda não tinham nascido.

Nem queria pensar no meu futuro. Uma criança não deve pensar nessas coisas complicadas e o facto de meu pai me obrigar a pensar no passado já me aborrecia bastante. Mais do que toda a gente poderia imaginar. Por minha vontade nunca teria tido essa coisa do passado, nunca o teria sequer desejado, nunca me teria preso, voluntariamente, a uma coisa tão pesada e de tanta responsabilidade. Era tão livre como um pássaro voando, embora me cortassem todas as asas da imaginação e procurassem que eu fizesse o que não podia. Não tinha forças para ser mais do que uma criança, a criança que era e manteria viva dentro de mim pela vida fora. Se pudesse.

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