Contos, Fotos e Histórias do Marquês da Ajuda, Cacela e Sta Rita

quinta-feira, novembro 03, 2005

CONTO IV


No café do Faustino o pai do marquês agarrou de novo o passado:
Era um futuro desses que meu pai me profetizara só porque perdera o segundo ano do liceu.
E eu que queria tanto ser herói de tudo e só não sabia como.
Dentro dos meus pensamentos, tantos pensamentos, enquanto os trabalhadores cavavam com uma vontade que talvez não tivessem para mostrarem ao meu pai que eram diligentes e mereciam o que ganhavam. Não tiveram sequer uma palavra para o contrariar nas suas profecias a meu respeito.
Poderiam dizer-lhe :
- O senhor Venâncio é um agressor das vontades alheias!
Ou gritarem-lhe :
- As crianças têm de ser respeitadas!
Mas não. Continuavam com os olhos na vergonha que eu tive das suas covardias.
É bem feito que ele os trate desumanamente! pensei, indignado por me encontrar sozinho a lutar contra o tirano que nos escravizava a todos.
Depois arrependi-me de pensar assim. Eles estavam a ser leais comigo e mentiam ao meu pai com a sua aparente vontade de trabalhar. Afinal lutavam da única maneira que podiam. Agrediam, também, com o seu sorriso. Estavam calados para não lhe dar razão. Estavam calados para não lhe dizer que estava a ter a paga do que fazia aos outros.
- Anda uma pessoa a trabalhar para um gandulo destes! - disse o meu pai com raivas de paternidades legais na voz. - Mas eu trato-te da saúde !
Depois calou-se como se estivesse a inventariar os pensamentos.
- Nós, depois, falamos. Não as deitas em cesto roto, não! - com vinganças pensadas maduramente.
Eu não gostava mesmo nada que ele me chamasse gandulo, embora não soubesse o que queria dizer tal palavra. Sabia que não era nada de bom e honroso para mim e intimamente pensava que gandulo e outras coisas piores era ele. Nem ia ver ao dicionário o que a palavra queria dizer para não me sentir ainda mais ofendido.
Bailavam-me dentro dos ouvidos as profecias de desgraças iguais às dos desgraçados de Venda Nova e, de para mim, pensava que meu pai nunca me veria andar assim, nem que eu tivesse de esperar que ele morresse primeiro para, depois, senhor do meu destino, ser como eles. O que eu, para mim, achava não ser muito fácil pois eles eram inconfundíveis e únicos. E eu, era eu.
O Ruana andara na escola até aos dezasseis anos e nunca aprendera a ler. Nem lhe fazia falta saber. O pai marítimo, enquanto vivo, obrigava-o a ir para o mar em busca de uma profissão para os outros e de uma aventura para mim. Em busca de nada para ele. Depois ninguém mais quis saber do Ruana. Era um inútil. Até lhe faltavam dois dedos na mão direita e um era o que já nem apontava coisa nenhuma. Mesmo inútil ia todos os dias á praia apanhar conquilhas e como andava sempre descalço era só chegar à areia e começar com os pés a agitá-la para fazer vir à superfície mãos cheias delas que ia metendo no seu cestinho de cana, redondo e amarelo com brilhos de mar e sol, para depois as vender à porta da praça.
Por cinquenta centavos enchia quatro medidas e toda a gente lhe chamava gatuno !

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