Contos, Fotos e Histórias do Marquês da Ajuda, Cacela e Sta Rita

segunda-feira, outubro 17, 2005

CONTO I


Numa noite de luar o avô do marquês disse-lhe:
- Mais tarde o teu pai vai-te pedir que registes :
Uma trombose varrera em Venâncio Figueira, meu pai, a vontade. Apenas lhe deixara nos lábios um esgar trocista para todos e que, a minha mãe, parecia um sorriso de compreensão complacente. Ficou assim durante oito dias, a rir para minha mãe que, consciente do estado desesperado de meu pai, ocupava o seu tempo de tragédia e desespero, chorando.
Meu pai morreu a rir, ao cair da noite. Minha mãe, com os soluços a rasgarem-lhe o pranto e a afogarem-lhe a voz, dramaticamente, disse num grito :
- Que desgraça a minha!
Dentro da urna de mogno, primeira classe, destapada, meu pai olhava para cima com os seus olhos apagados de raivas ou de lembranças recordadas pelos vivos. Com o mesmo sorriso nos lábios. Com o seu nariz , hebraico grande e pesado, afilado pelos dedos cegos da morte, apontando os rumos da eternidade. Dos outros. Das recompensas e dos castigos. Dos outros.
No ar o cheiro enjoativo da cera derretida a levar aos narizes dos vivos a consciência da morte. Se meu pai ainda estivesse vivo, irreverente como era, teria dito :
- Apaguem lá essa merda !
Nenhum dos filhos herdara dele a coragem. Levara-a consigo para apodrecer dentro do seu corpo. A Clotilde Calça Linda, com um algodão muito branco embebido de álcool, caçava na testa e no nariz os piolhos que fugiam apavorados do cabelo e da barba e iam para a liberdade da pele como ultrajes às dignidades da família do morto. Pacientemente ia desafrontando a honra piolhosa dos Figueiras colocando os piolhos capturados, com uma sacudidela definitiva, dentro de uma tigela de bordos dourados onde ficavam a boiar no álcool..
- Era a tigela dele - disse minha mãe com um lamento suspirado.
- Até os pobres bichos , coitados, têm medo da morte disse o Babão a tentar, com os dedos pesados da mão direita, apagar a comichão persistente no alto da cabeça.
Meu pai deixara cinco filhos e todos estavam presentes. Até meu irmão Natal de Jesus viera. Tinha sido banido da família como ovelha ranhosa que nunca fora capaz de pertencer ao rebanho dos Figueiras. Meu pai tinha-o deserdado e minha mãe concordara com ele. Era nosso irmão mas era diferente de nós. Vivia, ilegalmente, com uma mulher qualquer sem árvores para o futuro e com desgraças no passado, e o conhecimento público de tal atitude virara contra si a ira dos pais e o desprezo dos irmãos. Mas não faltara ao funeral do pai. Acompanhado da mulher com quem vivia, a seu modo. Sereno. Mudo de sentimentos e de palavras. Presente porque se sentia filho do homem que o banira por conceitos enraizados nas pessoas. Talvez esse meu irmão tivesse tanta coragem como meu pai e nunca precisasse de a dizer a ninguém. A sua atitude não teria sido uma prova evidente da sua coragem ?
Minha irmã Rosália confortava o melhor que podia minha mãe. Meu irmão Luís estava demasiado velho para os seus cinquenta e dois anos. O tempo agredira-o severamente. Minha irmã Clara era ainda uma linda mulher com os seus quarenta e dois anos não obstante alguns cabelos prateados.Os meus cunhados andavam dum lado para o outro nervosos, impacientes, desejando talvez que o funeral se realizasse depressa por que tinham de ir tratar da vida.
Salvo meu irmão Natal de Jesus todos me pareceram, nessa altura do meu pensamento, cães que conseguiram lançar os dentes a uma peça de roupa e que acabarão por esfarrapar com raivas velhas. Mentalmente procurava averiguar a qualidade dos meus dentes e a força que teria de pôr neles.
Afinal, estavam ali, a rodear o cadáver de Venâncio Figueira os anjos do passado que se tornaram em abutres do presente. À espera de devorarem uma fera de 1930.
Como se tinham modificado tão profundamente as crianças que eu conhecera !
Como eram diferentes as realidades dos sonhos que tinham sido sonhados, um dia e outro, em voz alta, por todos os que estavam agora, com os sentimentos dos outros, rodeando o cadáver dum homem que tanto assustara as crianças indecisas que nós éramos !
O que o tempo fez !
De vez em quando aparecia uma nova pessoa, das antigas nas tragédias vividas, para dar os pêsames à família.
Minha mãe chorava a perda inconsolável de metade do seu destino e meus irmãos com a cara adequada aos sentimentos dos outros respondiam com mentiras às mentiras das palavras confortadoras. O único que se mantinha digno, sem indícios de dores ou de prazeres, era meu irmão Natal. Apenas dava a sua presença sem outros encargos.
O Babão arrastava as pernas trôpegas e cansadas dum corpo sem reforma. Tinha ido ali para sofrer também as dores da família, por fora, sentindo por dentro, talvez, o prazer de uma vingança realizada pelo destino.
- No fundo não era mau homem - afirmou o Babão com as palavras arrastadas do seu cansaço.
A realidade era outra e ninguém tinha coragem de a afirmar.
Ninguém conseguira ver o fundo de meu pai para se certificar se era realmente bom esse fundo afirmado com tanta convicção pelo Babão. Afirmado pelo Ceroilas. Afirmado pelos vivos que ali tinham ido dar uma última mirada a um homem que nada mais fizera do que contribuir para a humilde condição de trabalhadores sem regalias. Sem outras esperanças na vida do que terem um dia para a morte.
- É o que nos espera a todos - disse o Ceroilas.
Todos os que morreram antes de meu pai teriam negado, como sempre o fizeram, aliás, as palavras dos vivos com obrigações para os outros vivos, perante um homem duro que tanto os fizera sofrer. Que estava, agora, imóvel, iniciando a decomposição do corpo onde estivera alojada, durante setenta e cinco anos uma força geradora de frustrações e desânimos, de fomes e misérias, de desesperos e tragédias, nos corpos e nas almas daqueles que o serviram.
Que ainda tinham uma lágrima mentirosa com força suficiente para riscar na cara destinos iguais a todas as outras choradas !
O tempo tinha mudado tudo. Especialmente as pessoas. Tinha modificado profundamente as crianças que eu conhecera. Se eu não soubesse que tinhamos sido irmãos teria negado ali, junto à urna de meu pai, todas as fraternidades que um acaso determinara.
Como tudo era diferente dos meus recuados catorze anos !

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