Contos, Fotos e Histórias do Marquês da Ajuda, Cacela e Sta Rita

quarta-feira, agosto 23, 2006

Complexo de Ofélia (a galinha)

Ofélia possuía personalidade de fêmea. Passeava a sua classe, quintal fora, com distinção de quem desfila em passerelle. O seu sonho, ainda franga, era ser rainha de uma capoeira sem redes, um lugar na natureza, batido pelos ventos, agitando a plumagem luzidia. Galinha de sonho de um galo encantado, longe da panela, do forno e das fogueiras. Ofélia detestava os santos populares. As crianças corriam, saltavam sobre o fogo, queimavam alcachofras, frutos do cardo manso que também ardia. Mas as alcachofras eram tipo Fénix, renasciam do fogo no dia seguinte, bem... algumas, porque outras ficavam em carvão.
Mas o que estava a acontecer não era a realização do sonho era a confirmação do pesadelo. O branco de coração preto preenchia os espaços de meditação e relaxamento de Ofélia e um estranho murmurar, sibilino e verrugoso alterava o seu cacarejar. Faltava-lhe a felicidade de encontrar minhoca na terra esgravatada e galo, para companheiro de manhãs despertas pelo seu cantar. Có coró có có...có coró có có, código da madrugada e da carícia erótica. Espreguiçar asas, estendendo-as ao limite da linha de voo em corrida na exiguidade das paredes do quintal. Quantas vezes questionou Ofélia o tamanho do seu pequeno cérebro e pensamento tão vasto. Quantas e quantas vezes se interrogou: como é possível nesta dimensão ser apenas galinha?

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