Contos, Fotos e Histórias do Marquês da Ajuda, Cacela e Sta Rita

quinta-feira, novembro 17, 2005

CONTO VII



Numa pausa olhei a vidraça que me dava o enquadramento de um trecho de horta arqueológica. Um papel amarrotado deslizava, movido pela brisa da tarde, no parapeito da janela, pelo lado de fora, assemelhando-se a insecto encantado pela luz. Abri e li :
Tinha ido para o Liceu, aos doze anos, porque meu pai, para quem eu olhava com muito respeito, ou com muito medo de olhar, tanto que quando estava sentado à mesa fazia o meu olhar passar por baixo dela antes de o dirigir a ele, me disse, certo dia, depois de completar o exame de instrução primária:
- Ouve lá. Tu queres ir estudar, ou queres ir trabalhar no campo?
- E o que é estudar? - Perguntei com os ares mais inocentes deste mundo.
- Estudar é seres uma pessoa esperta e importante.
Era o que eu mais queria ser!
Meu pai continuou :
- É não fazer nada.
Era também o que eu mais gostava, para ter muito tempo para brincar.
- É a vida fácil - disse meu pai com seus ares de pessoa que sabe tudo, que podia garantir com autoridade tudo o que dizia com o seu soberano afirmar " quero, posso e mando “.
Para mim não havia ninguém nessa altura da minha inocência que soubesse mais do que o meu pai, ou que tivesse mais autoridade do que ele pois castigava as crianças e toda a gente estava de acordo. Se ele quisesse até podia matar-nos.
Nós não sabíamos o que era morrer mas todos achávamos que estava bem, que podia matar-nos para fazer justiça.
- O senhor doutor Campos e o Senhor doutor Abraão também estudaram por isso são agora pessoas muito importantes. Têm um canudo. E é muito importante ter um canudo - assegurou meu pai.- Quem não o tem não tem nada. Quem não é formado é uma trampa!
Para mim era-me grato ser uma pessoa importante com canudo das considerações para não ser uma trampa e andar a não fazer nada, como meu pai dizia. E ele sabia bem o que dizer pois quando dava ordem aos trabalhadores ninguém o contrariava, mesmo quando se tratava de homens muito mais velhos do que ele, capazes de serem seus pais.
Com doze anos eu gostava de tudo o que era bom embora ainda não soubesse bem estabelecer as diferenças. Por isso meu pai explicou e continuou a explicar muitas coisas que eu não compreendi mas não disse nada porque ele não admitia que as pessoas não compreendessem logo.
Eu quis ir estudar porque era, segundo a concepção geral, não fazer nada e optei por essa solução que não me agradava muito, pois que tinha de ir para Faro, mas que era o que dava menos trabalho.
Sabia muito bem o que era trabalhar no campo por que desde pequeno me habituara a ver os homens e as mulheres agarrados a uma enxada, ao arado, ou à foice, como escravos que só tinham nascido para essa servidão.
- Nasce uma pessoa para trabalhar - dizia um com cansaços velhos.
- Para andar uma vida arrastada - diziam todos os que eu conhecia.
Pessoas vestidas de panos velhos, gastando a carne, sem tempo para pensarem em injustiças ou esperanças. Homens que só tinham cara para que o suor lhes escorresse nela. Com olhos a brilharem claridades fenecidas coladas nessas caras de esforços e de martírios.
Trabalhar era suor e desânimos.
As mãos a varrerem com gestos parados o que escorria pelos sulcos abertos no pó, na dor, no tempo suspenso naquelas caras sem esperanças e sem lugar para sonhos.
Sabia o que era trabalhar.
Via aquela gente que não sabia rir nem chorar. Que talvez já nem soubesse o que era sofrer, o que era o drama de viver assim porque para eles, a vida e a morte eram irmãs gémeas. Que não tinha outra explicação que serem injustas.
Eu não queria trabalhar no campo como aquela gente que, afinal não era ninguém. Que só tinham nascido para o que contassem com eles para um trabalho sem principio nem fim. Que só tinham nascido para sonharem pesadelos inconscientes. Com destinos iguais de pais para filhos, por toda a eternidade. Uma eternidade de nunca acabar. Aquela gente era uma manada. Um rebanho de tantos homens e tantas mulheres contados como cabeças de gado a andarem de um lado para o outro da sua eternidade. Uma eternidade que nunca devia ter começado porque era só de sofrimento. A eternidade devia ser justa. Devia ser um pouco melhor para aquela gente.
Eu era criança e gostava dos trabalhadores como se fossem meus filhos. Não podia fazer nada por eles ainda que me juntasse às suas dores porque a minha voz seria uma voz calada como as deles.Sim, eles eram o coro das vozes caladas de todos os séculos que ainda não tinham morrido. Eles transportavam a dor através de todos os tempos e nunca lhes faltou as forças.
Mas não queria ser como aquela gente que já não sabia gritar, que andava todo o dia vergada para o chão mordendo-o com a enxada, com as vozes dos desânimos partidas pela cintura porque eu não me sentia com forças para calar o meu grito. Se o abafasse dentro de mim, explodiria e seria a trampa das comparações de meu pai. Antes queria ir estudar para não fazer nada e ter um futuro igual aos senhores de canudo que eram importantes porque eu ainda não os conhecia bem. Mais tarde iria saber que muitos deles eram muito menos do que os trabalhadores de meu pai.
Tinha só doze anos e os olhos e os ouvidos de aprender lições que as pessoas mais velhas estão sempre ensinando porque não foram capazes de aprender as suas, suficientemente. Não queria ser como aquela gente que trabalhava para comer papas de milho ao almoço e ao jantar. Papas de milho sempre. Sem um protesto grande. Sem um lamento pequeno. Sem um grito que suspendesse a vida por instantes para que ela fosse diferente nesse grito. Sem revoltas desnecessárias para não gastarem gritos.
Para pouparem forças que talvez já não possuíssem.

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