Contos, Fotos e Histórias do Marquês da Ajuda, Cacela e Sta Rita

segunda-feira, outubro 31, 2005

CONTO III

Sentado no poial o pai do marquês continuou :
Em Venda Nova havia cinco bêbados profissionais, verdadeiros amadores de uma vida incerta, que serviam de exemplos que não deviam ser seguidos ou de ameaças de futuros, como era o meu caso.
Quando se falava de alcoolismo e dos vários inconvenientes logo surgiam essas figuras como as suas mais graves consequências e esqueciam-se os outros, os que maltratavam as mulheres e os filhos sob a aparência de uma legitimidade que no fim também não era respeitada.
Zé Melão, Arturinho, Paneiro, Ruana e Ratinho não tinham profissão. Não recebiam rendas. Não pagavam impostos. Viviam porque viviam. Eram uns párias que as pessoas acabaram por aceitar como se tivessem sido enviados por um destino que se impusera, independente da vontade das pessoas. Para serem os desgraçados dos outros, daqueles que, se tinham as próprias desgraças, não as tinham suficientemente, ou naquelas medidas sem medidas.
Toda a gente afirmava que eles eram uns infelizes mas ninguém fazia nada para o evitar. Todos sabiam que há um destino que faz com que as pessoas sejam o que são e não o que se pretende que sejam.
Meu pai ameaçara-me com um futuro idêntico ao Paneiro ou ao Arturinho, mas eu não poderia nunca ser qualquer deles. Poderia ser melhor ou pior, segundo a opinião de cada pessoa que me comparasse ou poderia até não ser nada.
Aos catorze anos não era ainda ninguém nem tinha a certeza de o poder vir a ser.
Zé Melão talvez já não pudesse ser mais nada do que aquilo que era, se era alguma coisa para os outros ou para si. Era um velho. Andava sempre dobrado pela cintura como se quisesse apanhar o chão com as pontas dos dedos e apenas os olhos se levantavam um pouco para ver o mundo à distância e o céu misturado com a linha do horizonte. Uma doença qualquer deixara-o assim, incapaz de trabalhar, e só fazia alguns recados arrastando o corpo e atirando os braços em movimentos que pareciam desenhos caídos no chão e que ele procurava apanhar em cada passo.
Não tinha família nem parentes que se conhecessem a quem se pudesse atribuir culpas do seu abandono.
O nosso professor de instrução primária, o senhor Figueirinha, quando nos ensinava geometria dizia-nos que o Zé Melão era um caso agudo do ângulo recto por que as pernas dele formavam com o tronco um ângulo de noventa graus. E acrescentava com um sorriso especial que havia muitas pessoas que se dobravam mais ainda do que o Zé Melão e que eram casos agudos de muitas coisas obtusas e que não confundíssemos. E explicava ainda muito mais coisas que não compreendíamos e que ele dizia não ter importância por não serem do programa.
O senhor Figueirinha também ia todos os dias, depois das aulas, para as tabernas e quando voltava para casa ia sempre ziguezagueando porque a estrada era estreita e irregular e ninguém dizia que ele era bêbado ou tinha estado nas mesmas tabernas onde estavam os outros que eram desgraçados. As pessoas mais velhas só diziam “em que estado vai o senhor professor ! “ ou “ benza-o Deus “ é uma pena, é tão bom professor ", mas não riam, nem faziam coisa nenhuma. Apenas viravam a cara para o lado, com vergonha.
Se ele encontrava os seus alunos punha-lhes a mão, com muita ternura, sobre o ombro, umas vezes mais leve outras vezes mais pesada, e conversava com eles coisas muito bonitas sobre a vida e chamava-lhes “ meus filhos “. Depois ia-se embora pela estrada irregular dizendo entre dentes " isto é tudo uma merda ". Eu, por mim, fazia que não ouvia para não ter vergonha.
Quando o senhor professor morreu foi tanta gente ao funeral que até parecia uma festa sem foguetes. Todos diziam que ele tinha sido um grande professor porque todos tinham já esquecido os puxões de orelhas e as reguadas que dera com toda a força da sua severidade .Tinha eu dez anos aquando da sua morte e continuava a vê-lo, com á candidez dos meus anos, aos tombos na rua irregular e estreita, dizendo palavras doces aos alunos e os palavrões que empregava como se estivesse sóbrio para esbofetear a vida com o seu sorriso misterioso nos lábios. Talvez que só eu e as outras crianças o vissem assim vivo e igual a si próprio e não como ele estava agora, parado para sempre, dentro do caixão onde as pessoas punham flores de ser costume em casos daqueles sem remédio, com as suas caras de olhar bem para a frente, cerimoniosamente, olhos da vida nos olhos da morte, dignamente, por que o professor não ia na rua aos tombos envergonhando as pessoas decentes. Estava morto para sempre com aquela cara de já não querer saber mais da vida dos outros. De querer saber só da sua morte. " Era um grande professor " , todos diziam. E mesmo todo estendido eu via que ele não media mais de um metro e sessenta centímetros
Já tinha morrido há bastante tempo mas lembrava-me dele porque era tão bêbado como o Zé Melão. Ou como os outros. O Arturinho era baixo, velho e bêbado , andava quase sempre a cair, mas mantinha o seu ar de distinção. Como se fosse um fidalgo decente de famílias ricas e finas a quem tivessem tirado tudo, menos a vida.
Apareceu em Venda Nova sem ninguém saber donde viera e a sua vida foi sempre um mistério até toda a gente saber que ele era apenas uma pessoa sem importância para ninguém, nem para si. Trouxera um carrinho de mão que tinha uma roda maior que as de todos os carrinhos já existentes em Venda Nova e o sítio onde punha as mãos estava tão polido que até brilhava ao sol ou às estrelas. O carrinho tinha dois buracos redondos, um maior do que o outro, que serviam para meter neles os cântaros de água, de barro vermelho com riscas branco acinzentadas.
Não havia água canalizada e toda a gente utilizava a dos poços, de vários sabores e qualidades, fresca de arrepiar os dentes à saída do ventre da terra. As tabernas eram, habitualmente, abastecidas pelos cinco bêbados profissionais que se serviam, regra geral, do carro do Arturinho. Evitavam assim terem de alombar com os cântaros pesados e incómodos e de ficarem molhados como pintos com os solavancos da caminhada.
Como o poço da Canilha ficava a um quilómetro da vila todos se davam bem com o Arturinho embora não se entendessem entre si.
O Paneiro era natural da Venda Nova, nascido e criado, e o caso típico de filho família que degenerou. Que saiu da senda do dever e das tradições familiares para se entregar, de olhos fechados, à má vida.
Toda a gente o censurava pelo seu pouco tino e ruim cabeça.
Era filho de Manel Paneiro e fora criado com extremosos carinhos por sua mãe, senhora doente que acabou seus dias entrevada, metida na cama, sem ter ninguém que lhe chegasse ao pé, como era habitual nessa época entre pessoas virtuosas e muito bem vistas.
O século vinte das civilizações aplicadas tinha começado há poucos anos e tinha os erros da sua pouca idade reflectidos nas pessoas.
O Paneiro tinha sido marinheiro graduado e quando aparecia em Venda Nova com o seu fato muito branco, como espuma de ondas, toda a gente o invejava. Tinha viajado muito, conhecia as sete partes do mundo, e sabia contar histórias que ninguém tinha ouvido antes. Parecia um doutor formado em histórias de terras e gentes diferentes e as pessoas juntavam-se à sua volta para o ouvir. Da boca dele as palavras saiam luzindo claridades para explicarem os mistérios da China e os exotismos das Índias. As descrições fantásticas dos batuques africanos com fogueiras ardendo sempre para que as sombras também bailassem nos nossos ouvidos pasmados. Com as magias das peles de cobre e bronze emitindo revérberos como estátuas molhadas.
O pai dele vendia panos. Para vestidos, fatos e lençóis. De porta em porta, pelas casas mais afastadas e por lá andava com a sua mercadoria carregando a carroça pintada de azul e branco puxada por uma mula vestida de castanho velho, durante oito dias ou mais, dormindo nos palheiros ou ao relento, consoante o tempo, as necessidades ou as oportunidades. Levava uma vida tão arrastada, um viver tão vagabundo e incerto que o próprio filho não gostava muito que lhe falassem no pai. Como se fosse desonroso para ele, marinheiro de branco graduado de promoções diversas, corrido e viajado pelas mais remotas paragens do mundo, que em Venda Nova existisse um velho a quem toda a gente chamava Manuel Paneiro. E dizia alto e bom som que se chamava João de Albuquerque Morgado e que nada tinha a ver com a alcunha do pai.
- Eu tinha de ter um pai - esclarecia.
Um dia saiu ao Manuel Paneiro o primeiro prémio da lotaria e toda a gente que anda preocupada com a vida dos outros para esquecer a própria começou a dizer que ele estava rico, podre de rico, embora continuasse a vender panos e a afirmar que o que lhe tinha saído era apenas uma ajudinha para tratar da mulher.
- É uma pessoa muito doente e faço muitas despesas com ela - lamentava-se.
Ninguém acreditava. Nem o filho que supôs estar o pai a ocultar, por uma questão de sovinice, a fortuna que os caprichos da sorte tinham posto nas mãos.
Saiu da Marinha sem dar ouvidos aos bons conselhos impeditivos da sua atitude.
- Deixa-te estar, meu filho, que a vida cá fora é muito difícel e ingrata .
- O pai não tem vivido sempre ?
- Deus sabe com quantas dificuldades.
- Venho ajudá-lo. O pai começa a estar velho e já não dá conta do recado.
- O negócio não dá nada, João. Tu, na Marinha, daqui a uns anos tens direito à reforma. Podes ser um grande senhor.
- Faltam-me ainda oito anos.
- O tempo passa depressa.
E foi por isso que apareceu em Venda Nova trajado à civil. Para ficar, definitivamente.
Toda a gente pensou, então, que o negócio dos panos iria ser aumentado pois o João sabia tantas coisas que delas tiraria proveito para se tornar num rico industrial até. Mas tal não sucedeu porque ele não fazia outra coisa do que andar pelas tabernas contando as mesmas histórias de sempre. Bebendo e pagando copos de vinho aos que o ouviam já sem qualquer interesse que não fosse beber o vinho. Ia sacando do pai o dinheiro que precisava para as despesas e quando o pai lhe impôs que escolhesse vida nova passou a só a aparecer em casa na sua ausência para apanhar da mãe o dinheiro que o pai lhe negava. Ao principio Manuel Paneiro não deixava transparecer nada a não ser os sinais de tristeza que se tinham marcado na sua cara velha e cansada. Se lhe perguntavam pelo filho dizia :
- Fez uma grande asneira em sair da marinha. Os oitenta contos saídos na lotaria já lá vão. E ele não tem futuro. Em 1930 ainda se morria de desgosto e foi nesse ano que o João perdeu, primeiro a mãe, e três meses depois o pai.
Com essas mortes toda a gente ficou com a impressão de que a vida iria ser diferente para o João que, vestido de luto carregado e de barba crescida, mostrava sentimentos dos mais elevados quanto à perda que sofrera. Tomou o negócio do pai e começou a fazer o mesmo percurso. Ia recebendo as contas antigas e encurtando cada vez mais as voltas até ficar definitivamente em Venda Nova, para onde ia logo de manhã com a carroça e o que restava dos panos deixados por seu pai, de modas antigas. E à porta da taberna os vendeu por preços inferiores ao seu custo. Um dia vendeu a carroça e a mula que a puxava por que não se justificava que ficasse com um encargo de tal natureza uma vez que tinha abandonado o negócio.
Daí para a frente passava os dias na taberna, jogando cartas, gastando o tempo o resto do dinheiro e a própria roupa que trazia no corpo. E o próprio corpo que, afinal, não lhe servia para mais nada. Andar aos tombos de uma vida sem eira nem beira. Sem significados. Reduzindo-o apenas ao que era e sempre recusara com a vergonha dos outros. E ficou a ser, para toda a gente, o Paneiro. Com a roupa a ficar em cada dia mais velha e desfeita, mais suja e rota, a aparecerem bocados de pele nova e cabelos como sorrisos dum corpo que já não albergava nem esperanças. A ficar com os pés a saírem-lhe pelos sapatos que mostravam bocas abertas com sorrisos de dedos escarnecendo de todas as sujidades.
Tinha uma maneira muita sua de andar, mesmo quando estava toldado pelo vinho. Ficara com a disciplina de marchar que aprendera na Marinha. Atirava os pés para a frente, depois assentava-os no chão e arrastava-os para trás para evitar tropeçar pois os sapatos estavam despalmilhados e cada vez que levantava os pés do chão a sola ficava virada para baixo como se fosse cair do sapato.

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